Sobre a psiquiatria, o activismo e a crítica interna
Sobre os assuntos que dão título a este texto, desta feita com uma estrutura precedente não devedora do gonzo, já correu muita tinta. Geralmente em inglês, ou inevitavelmente anglicizada, porque a pequenez complexada da sociedade em geral, e dos meios activistas em particular, dita que apenas o que tem sanção oficial, incluso na oficiosidade anarquista (e é sobre este meio que me costumo deter, pois que as críticas anti-esquerdistas se tornam fáceis, ultrapassadas e até por vezes tecidas de forma auto-paródica pela própria ideia e acção da esquerda), possa ter selo de respeitabilidade.
A necessidade deste texto talvez seja exclusivamente minha, e não haja então por que o publicar. Julgo, no entanto, que, ao invés dos que, numa feira anarquista do livro de Lisboa, não encontraram à hora das refeições ocupação melhor que, após este tempo todo, rufiar alguém que não conhecem até à exaustão; ao invés desses não estou ainda consumido pelo cinismo obfuscado por tiradas sobre a classe operária, classe operária essa que não tem qualquer projecto em comum com a RELL.
A exposição a que mais uma vez me sujeito, e as chico-espertices que terei de aturar por conseguinte, não serão para mim novidade, e daí decorre que a calmaria supostamente benevolente como a minha presença é recebida nos espaços que cada vez menos frequento é apenas ressaca da hipocrisia lacrimejante daqueles que sempre tudo fizeram para tornar espaços que deveriam ser de descoberta, encontro, erro e alegria, em espaços onde, na procura incessante de construções e destruições alternativas ao modo de vida a que sou, como outres, subjugado, não encontrei senão a imposição externa e extremamente violenta de um miserabilismo que me é por natureza alheio. Se encontrarei com isto um muro de silêncio e escárnio, admitamos que não tenho o temperamento do Júlio Henriques, como nunca o quis ter. Se escrevo em tom pessoal e desprofissionalizado, é porque não só não quero tão-pouco ser ideólogo, como tenho pendor anti-ideológico, crendo mais nos furores quotidianos que nas declarações grandiloquentes. Apesar disso, e apesar das menções que o tema do texto torna inevitáveis, está é sobretudo uma crítica contextual mas não-específica, e não um ataque pessoal a quem, pelo seu solipsismo, se vê sempre imune a ataques pessoais. Se, nas palavras de António Baião, escritas por certo entre reuniões d’A Batalha em que o Farrajota, que nunca terá a coragem de fazer justiça à sua belíssima t-shirt “AutoBahn”, decide sobre as maleitas de que cada qual padecerá, sou um amoral niilista cobarde, poder-se-ia dizer que, à parte a cobardia, a cobardia que leva anos a fio a remar contra a maré desta praxe macabra, tomo os epítetos com orgulho, até porque entre académicos e cartoonistas, estes são péssimos na arte de conspirar, suas tramas desfeitas por um puto estúpido contra o qual nessa mesma feira do livro se vaticinou assertivamente, como alguém supusesse que por uma vigilância massiva empreendida, entre outros, por “anarquistas”, me conhecesse de algum lado. E agora devo a uma tal de Norla Virra, que expôs a casa de apostas, que não seja possível que me enlouqueçam com o mesmo fervor impune de antes, nem que atribuam à loucura as minhas invectivas.
Tão-pouco o necessitam já de fazer. O objectivo maldito foi alcançado, as minhas vitalidade e juventude foram arruinadas. É sabido o truque pelo qual me tendem a insultar de tal maneira quando me encontro fragilizado pelas torturas psiquiátricas sobre as quais nem a mais apaixonada abolicionista d’A Gralha abre a boca. Ou, se o faz, apenas para me objectificar e outrizar com seu debate académico. É curioso que, neste meio, até os insurreccionalistas, qualquer que seja a linguagem à sua disposição, são académicos. No fundo, objectificam e debatem como académicos, tendo-me como curioso estudo de caso, ou caso de estudo, sem nunca me envolverem no que me envolveria, silenciando-me com desprezo, à maneira de Zé Paivas e Caterinas de vários disfarces imputando-me falsidades para proteger delatores amigos, mobilizando opinião sem a mais mínima noção de companheirismo, como não fosse eu ser senciente, ou como tivesse eu ainda de batalhar para ter voz no meio, não bastando já a violência, a agressão, e o estigma do restante arredor social.
Dirá a rainha dona Maria de Benedita, nas suas visitas turísticas às Covas do Barroso, que acabou. Fechou a casa de apostas, o que lá vai lá vai. Mas não acabou. Não acabou enquanto em toda a vida sinto a repercussão deste meio que constantemente me sabota e me devolve à alienação capitalista. Entre o “ninguém gosta de ti” e o “o pessoal está todo contigo”, ambos os preceitos são inúteis, não têm qualquer correspondente prático, porque de igual modo nunca têm as minhas aspirações em conta.
E se falo na primeira pessoa, é porque entre quem rejeita a democracia representativa, ainda há muitos que são seus adeptos, rechaçando tudo e toda a iniciativa que não tenha sanção colectiva. Não incorro então no solipsismo de que acuso os demais, porque o ponto de partida da minha consciência é apenas ponto de referência para quem também a tenha; e do erro e do conflito poderiam nascer coisas bonitas, e se assim não é, é porque toda a prática me é vedada com as sucessivas torturas, sobre as quais nunca esperarei uma palavra de quem quer que seja que pudesse hipoteticamente tomar para si a outrora belíssima palavra companheiro.
“O pessoal está todo contigo”. Mas como? A fazer limpezas? A mobilizar a opinião inversa? A violar colectivamente os que me despiram? A corrigir erros? A movimentar dinheiro? Após sucessivos internamentos após os quais não tenho alternativa senão ser devolvido a uma família fascista, de uma forma infantilizante e regressiva, rompendo com qualquer dignidade e autonomia? O pessoal está todo… o quê?
Dirão os leitores de Ricardo Flores Magón que as bocas eram sempre “para os outros”. Não só sei da mentira que é dizê-lo, como, e daí? Até à tortura inaugural, sempre fiz ouvidos moucos a qualquer boca, o que me incomodava e incomoda é ser-me vedada a prática, é que esteja sempre retido e fragilizado em hospitais porque o senhorio anarquista quer que eu endireite as costas e me faça homem, enquanto saca uns bons cobres do rapto de príncipes para A Empresa.
Dirão outros que tal achincalho colectivo é apenas natural, a mera reacção comunitária a um corpo estranho que lhe é incómodo ou indesejado. Se apenas assim fosse, de novo não me incomodaria. Incomoda-me neste segundo caso não só as torturas, que aparentemente são entre os anarquistas consensualmente merecidas, nem só a repugnante casa de apostas à volta da qual construíram está maledicência; incomodam-me neste caso a co-optação (ou seja, de que isto passe por boa prática colectiva representante de um combativo meio libertário) como a instrumentalização psiquiátrica para esse fim, em que os actores podem sempre usar-se da desculpa de que o espectador apenas “ouve vozes”, de que nada é real. Isto tentam passar por crítica; mas não, a intromissão violadora da vida alheia não é “crítica”, ainda para mais quando orquestrada de maneira a que nenhuma resposta lhe seja possível, nem o teatro de cenários ou qualquer parada de solicitantes é “apoio”.
São meras distanciações que me impõem ao vivente para fins macabros, uma vez que, de contrário com os textos da moda que propalam, me medem segundo a minha utilidade, ou falta dela. Fazendo de mim máquina de fazer dinheiro e a minha vida dependente de uma rede de silêncios acríticos. Aliás, decida o Sérgio Conceição que não gosta deste texto, e poderão ficar sem ouvir de mim uns tempos.
Podia-se partir desta e esta merda para um sitio melhor, umas construção e destruição alternativas, com afinidades sinceras, redes de cuidados, combatividade viva, o que se faça. Do meu ponto de vista, onde tenciono travar batalha, isso torna-se difícil. Não só devido à censura e sabotagem de “anarquistas”, como devido ao seu deleite com a prisão psiquiátrica, devido à ameaça constante de tortura, mas ainda, e aqui se torna notável, à falta de reparação. Posso empreender esforços que uma ou outra pessoa reconheçam. Mas esses esforços nunca me envolverão nem terão qualquer relação com qualquer justiça. Daí que pouco sirva que se debata (mais um “debate”) o Flower Bomb num espaço perto de mim, se esse espaço é um entre muitos que lucraram com a minha miséria. Se além disso o espaço é sanista e hostilizante, qualquer que seja o seu discurso vigente. Se, para mais, o espaço e quem o compõe não tem qualquer solidariedade anti-psiquiátrica, além de que seja o tema da semana.
Falará o António Eduardo, se chegar a este ponto no texto, de críticas “internas” e “externas”. Ao contrário deste mexeriqueiro político, não só não tenho qualquer preocupação com “entrar”, como não sou de fechar os olhos a problemas “internos”, sobretudo quando estes resultarão em mais uma exclusão desavinda. Digam agora para falar com este ou com aquele, à boa maneira caciquista, para tratar da minha saúde.