Ponto de viragem na luta contra a mineração e o lítio em 2023
Brochura para impressão em anexo
Esta é uma análise crua enquanto ao busílis da inquietante passividade e falta de iniciativas difusas e directas contra a mineração no último ano.
Pretende dar pistas para inverter este processo, multiplicar as formas e os focos da luta, apelar à acção difusa e directa contra as empresas, instituições e projectos relacionados, nas zonas rurais, urbanas e periféricas.
Criar e reforçar laços com as localidades ameaçadas, e por fim, alimentar a vontade de lutar para relançar a oposição sem chefes nem concessões ao espólio do território.
Com os mecanismos próprios da pacificação social e de delegação do Estado português e da Comissão Europeia, as lutas que se têem vindo a materializar desde 2018 e 2019 contra a campanha de mineração de lítio em grande parte do norte e centro de Portugal têm vindo a perder a difusão, criatividade e espontaneidade que lhes eram próprias, para serem absorvidas nos modelos políticos e académicos de contestação característicos dos cosmopolitas centros urbanos, à hora destes projectos se aproximarem da sua materialização e de requererem acções concretas, contundentes e inequívocas quanto à sua rejeição global, e não circunscrita. Porém estes métodos contra-insurreccionais não se encontram apenas nestes mecanismos de pacificação e delegação, mas dentro das próprias organizações que têm por fim opôr-se aos projectos nas suas respectivas áreas, de forma a manterem o status-quo depois de completo o objectivo do abandono das ameaças imediatas aos seus respectivos interesses.
Especialistas de universidades de renome, sindicalistas afins ao poder, partidos de esquerda, activistas digitais aprestam-se a fazerem a maquilhagem digital e intelectual de heterogéneas lutas em defesa do território, com o fim de se assemelharem, senão de se fundirem, aos movimentos modernos do clima 2.0.
Virtuais, #interseccionais qb, em que se confundem fórmulas políticas de representação social-democrata (porta-voz, ONG, verticalidade de proposta e acção) com o véu ideológico pós-moderno em que o colonialismo o fascismo e o patriarcado – que por suposto devem ser combatidos nas suas frentes reais – vincam repetitivos argumentos que tentam uniformizar estas oposições, sem o aval das populações em causa, ou sequer integrá-las realmente na pretensão deste processo ideológico.
Inúteis e ineficientes à hora de armar as populações de vontade e ferramentas para se opôrem à vontade do poder, e úteis à hora de meterem estas populações no arquivo das víctimas da história – impotentes e casualmente atropeladas pelo desenvolvimento, neste caso, do extractivismo – apelam ao bom julgamento, à pena e à misericórdia das instituições democráticas nacionais e internacionais, quais padres António Vieira das redes sociais, para não voltarem a repetir as suas exações para com estes índios do hoje, para com estas bruxas prestes a serem queimadas na fogueira da Inquisição do progresso, para com estes ursos polares nos icebergues da ruralidade moderna.
Os velhos jogos de influência nas localidades afectadas pelos projectos de mineração confundem-se no tempo com o progresso destas lógicas de delegação das lutas, onde o clientelismo dos poderes rurais joga com os financiamentos europeus repartidos pelos autarcas e caciques locais, capitalizando assim o abandono da população jovem à migração de forma a perpetuar o sentimento de impotência e inevitabilidade dos que ficaram a presenciar o desaparecimento progressivo das formas de vida locais com pouca ou nenhuma oposição, sem terem materializado as polémicas em actos. A crença inculcada pelo Estado e pela sociedade espectacular de que apenas nas Instituições se contesta e se decide. De que na democracia os doutores substituíram os santos, e a vontade do dinheiro aquela divina de outrora, que viria a legitimar monarcas e ditadores e hoje legitimam a ciência e o poder que determinam a morte e a vida na superfície da Terra. Isto conleva a que os sucessos iniciais da luta difusa sejam substituídos pelo fatalismo do triste fado lusitano da luta concentrada em organizações que concentram em si a responsabilidade da luta, e que ao momento de anúncios estatais desmobilizam as populações, com clamores de vitórias temporárias e parciais: tal como o ocorrido na serra d\’arga, onde a desmobilização esvaziou a solidariedade e os encontros entre regiões e populações vizinhas, enquanto pairam ainda contratos em stand-by na serra.
Onde antes se esvaziavam pneus de funcionários de empresas e departamentos do Estado, hoje publicam-se abaixo-assinados de personalidades políticas e académicas. Onde antes se bloqueavam colégios eleitorais, hoje partidos passseiam as suas bandeiras. Onde antes responsáveis políticos e representantes das empresas tinham medo de pôr os pés sem escolta policial, hoje sentam-se confortavelmente em salões públicos, cinicamente tomando nota dos argumentos de descontento para demonstrarem que os mecanismos democráticos e de regulamentação ambiental dão ouvidos às preocupações populares, acompanhados com algumas migalhas e subvenções para modificarem a proporção de descontentes segundo a relação luta/preço do m2.
Onde antes a gente fazia vaquinhas e auto-financiava eventos, hoje ONG de milionários preocupados pelo estado do mundo – e em manterem a sua contestação controlável e civilizada -, financiam as iniciativas onde se ía lutar, mas se saía inculcado de ideologia até agora estéril na prática, safando-se como ponto de encontro para activistas cada vez mais afastados da realidade da luta das localidades, que são expostas à realidade virtual dos vícios da luta esquerdista urbana composta pela política, pela delegação e sua representação – no fundo, pela falta de iniciativas que incluam a população, vanguardizando as novas ideias pós-modernas inculcadas nas redes sociais e nas universidades – evangelizando a miséria de quem acaba por perder, fazendo carreira política e académica no processo.
Este texto parte desta análise para formular uma reacção concreta: o reconhecimento do falhanço redondo dos movimentos sociais e da defesa do território em Portugal nas últimas décadas, a sua sucessiva recuperação – incluso lá onde a política encontra-se completamente descredibilizada – e a procura de métodos múltiformes, directos, e criativos, de nutrir a oposição no terreno, ultrapassando mediante o selvagem natural os métodos domesticados de contestação, para armar as populações de vontade de lutar e desenterrar as organizações da sua inerente passividade.
Isto não é um apelo aos radicais, aos activistas ou aos anarquistas: isto é um apelo dirigido a quem se quer levantar e lutar incondicionalmente, até estes projectos serem definitivos riscados do mapa, sem prematuras falsas vitórias nem possíveis derrotas por desistência de quem quer que seja.
Extendamos sem retorno a práctica de acções concretas contra as estruturas de legitimização estatal destes projectos, procuremos o sair fora do quadro das rituais formas de contestação, previsíveis e calculadas, através de formas de negação intrínseca do terreno e da propaganda das empresas invasoras, extravasemos o conflito para além da ameaça mineira – contra a indústria do eléctrico, do digital, e do virtual – voltando a colocar a realidade da defesa das nossas vidas e daquela dos seres vivos que povoam os territórios que pretendemos negar ao capital e à violência de Estado como aquela que faça juz à palavra luta.
Pelo conflito permanente contra as minas, a indústria do lítio e o seu decrépito mundo
– pela vida.
Nuno Bosque, Primavera 2023
\” A política é a arte da representação. Para governar as mutilações infligidas à vida, obriga os indivíduos à passividade, à contemplação do espectáculo que põe em cena a sua própria impossibilidade de agir, a delegação irresponsável da suas própias decisões. Assim, enquanto a abdicação da vontade de autodeterminação transforma os indivíduos em apêndices da máquina estatal, a política recompõe a totalidade dos fragmentos numa falsa unidade. O poder e a ideologia celebram assim o seu próprio matrimónio fatal. Se a representação é o que tira aos indivíduos a capacidade de agir, a troco de proporcionar-lhes a ilusão de serem partícipes e não espectadores, esta dimensão da política sempre reaparece cuando alguma organização suplanta os individuos e algum programa os mantém passivos.
Reaparece sempre lá onde uma ideologia une o que na vida é separado. \”
Il Pugnale, 1996
Toda a acusação deste texto ter como objectivo a \”divisão\” ou a \”confusão\” dentro dos movimentos é remetida à responsabilidade destes mesmos críticos quanto ao facto destas lutas estarem a ser arrebatadas às populações e entregues em bandeja ao institucionalismo e à ideologia de uma esquerda em busca de conseguir representar e comandar de novo movimentos sociais difusos e potencialmente selvagens.
Para informar-se mais, recomenda-se a leitura do texto publicado na
primavera de 2022 \”Lítio branco e buracos negros da mineração na
Península Ibérica: notas em torno da transição energética, a
destruição contínua do território e suas oposições\”
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