Quinta-feira, 4 Janeiro 2024
Qamislho, nordeste do Curdistão dia de natal. Perto da hora de almoço começaram a bombardear por detrás do local onde jornalistas se reuniam, obrigando a uma saída apressada levando computadores, discos externos e os materiais essenciais para conseguirmos continuar a trabalhar. Um pequeno ponto branco no céu olhava ao resultado dos 4 ou 5 bombardeamentos que fizera nos últimos 10 minutos: um drone de guerra Turco.
A caminho do nosso novo local de trabalho, numa caminhada de 15 minutos ouvimos mais explosões ao longe e outras a menos de 1 km. Olhando na direção da fronteira Turca viam-se os rastos no céu deixados pelos aviões de guerra Turcos e, olhando com atenção, sim, lá estava um voando ao longo da fronteira, certamente esperando pelas coordenadas do próximo bombardeamento. Ao longo de todo o dia, até ao inicio da noite de 25, a cidade de Qamishlo foi alvo de dezenas de bombardeamentos. O trabalho intenso de tentar acompanhar as noticias e de ir atualizando a situação, de alguma forma serviu para acalmar o stress que a situação provocava. A noite terminaria com mais e intensos bombardeamentos.
Num intervalo do trabalho, para poder respirar um pouco de todo o stress da situação, fiz uma caminhada em volta do bairro. Ao cruzar numa rua, um clarão de luz no céu em frente seguindo de um grande “bang”. Em apenas 20 minutos de caminhada pelo menos quatro explosões. Ao regressar a casa, depois de me sentar na secretária e ter começado de novo a trabalhar, ouve-se o som de algo rápido a voar seguido por uma forte explosão. Pelo fumo que se via do quintal percebeu-se ter sido no bairro em frente ao nosso, não menos que um 1 km.
Todos estes ataques, assim como durante a tarde do dia 24, tiveram apenas como alvo infraestruturas civis. De acordo com o Rojava Information Center “18 diferentes infra estruturas civis com 32 ataques aéreos”. Estamos a falar desde a estação de serviço, à estação de petróleo, até à simples fábrica onde empacotam as lentilhas produzidas na região… Num dos ataques de dia 25 numa tipografia onde se imprimiam os livros para as escolas 4 pessoas foram mortas. No final do dia de 25 os números de vitimas mortais era de 8 com a certeza de vir a aumentar uma vez que dos 11 feridos alguns ficaram em estado grave. Uma clínica, antes gerida pelos Médicos Sem Fronteiras e agora pelo Crescente Vermelho Curdo, na cidade de Kobanê é também bombardeada e completamente destruída.
Esta nova vaga de ataques volta a ser uma repetição dos 5 dias de intensos ataques ocorridos em Outubro passado pelo estado Turco à região e que também visou infraestruturas civis, tendo resultado em 48 pessoas mortas.
No dia seguinte, apesar da noite longa a manter-me atualizado dos acontecimentos, acordei cedo. Tinha lugar o funeral de 6 das pessoas que morreram nos ataques de ontem. Ao chegar ao cemitério ainda as pessoas se juntavam. Um sistema de som e mais jornalistas já se encontravam no local preparados para a grande cerimónia que se previa. Enquanto se esperava pelos corpos das vitimas chegarem as pessoas caminhavam entre as milhares de sepulturas. 2012, 2014… as datas vão até a uns meses atrás. Muitos deles morreram a combater o Estado Islâmico, uns nos primeiros combates de 2012, outros vitimas das agressões do Estado Turco. Todos acabaram por morrer vitimas desta guerra e a defender aquilo que tem vindo a ser construído no Nordeste da Síria desde 2012.
Essa unidade é algo que se via na expressão das pessoas que se caminhavam entre as campas, nas famílias que visitavam os seus filhos ou filhas ali enterradas. Nas diferentes mães a chorar as suas crianças. Se lhe é dada a possibilidade de dizer umas breves palavras do que sentem, rebentam num discurso de arrepiar: de como essa dor não vai ser o que nos fará parar, que não vai quebrar a vontade de lutar e defender a nossa terra. Há tristeza nas lágrimas destas mães, mas também há orgulho.
A cerimónia começa e são milhares de pessoas por essa altura. Um claro sinal de unidade entre o povo de Qamishlo que acabara de ver a sua cidade ser atacada brutalmente, reunidas num luto e raiva coletiva. Desafiam o terror que a Turquia lhes tenta impor ao se juntarem aos milhares para celebrar e se despedirem das 6 pessoas mortas na véspera.
Ao lado do cemitério estão dois armazéns bombardeados várias vezes. O cheiro do fumo do extinto incêndio, que deflagrara nesses armazéns, enche o ar onde se enterram agora as vitimas dos ataques. O ambiente é pesado. Os caixões são colocados na terra e centenas de pessoas rodeiam-nos. Ouvem-se os choros e lamentos da irmã de uma das vitimas, enquanto que ao mesmo tempo outras pessoas cobrem o caixão com blocos de cimento e terra. Afastadas um pouco do local um grupo de mulheres mais velhas choram. Gritam lamentos e rogam pragas à Turquia pela dor que lhes causaram.
Estes ataques são o seguimento de uma política de guerra de baixa intensidade que a Turquia tem levado a cabo desde a sua última invasão em 2019. Desde então estas campanhas de ataques aéreos têm tomado como vitimas centenas de pessoas e resultando em danos às infraestruturas civis, agravando ainda mais a situação de crise humanitária que se vive no Nordeste da Síria. As políticas do governo de Erdogan são as mesmas do estado Israelita. São políticas de genocídio, de limpeza étnica e de ocupação.
Texto de DM publicado em Jornal MAPA (https://www.jornalmapa.pt/2024/01/04/natal-no-nordeste-da-siria/)
Fotografias de Rojava Information Center / RIC
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