Os refugiados do norte já estão a chegar a Khan Younis, onde os mísseis nunca param e estamos a ficar sem comida, água e energia.
[972mag]
Ruwaida Kamal Amer
Ruwaida Kamal Amer é uma jornalista freelancer de Khan Younis, o artigo foi publicado hoje na +972 Mag [Jornalismo Independente de Israel-Palestina]
Palestinianos inspeccionam os escombros de uma casa bombardeada por aviões de guerra israelitas em Khan Younis, na Faixa de Gaza, a 10 de outubro de 2023. (Yousef Mohammed/Flash90)
A cada dia que passa do ataque sem precedentes de Israel a Gaza, é cada vez mais difícil ser jornalista na Faixa de Gaza – preso entre os mísseis ininterruptos dos aviões de guerra da ocupação e a perda quase total de energia desde que Israel nos isolou completamente do mundo no início desta semana. No início desta manhã, Israel ordenou aos 1,1 milhões de habitantes que vivem no norte da Faixa de Gaza que fugissem para sul nas próximas 24 horas, limpando a área de palestinianos em preparação para a esperada invasão terrestre do exército. À medida que o número de mortos entre os palestinianos se aproxima dos milhares, sinto o dever de continuar a expor ao mundo o que Israel está a fazer aqui.
Uma das cidades da parte sul da Faixa de Gaza, para onde muitos estão a ser forçados a fugir, é Khan Younis – mas também aqui temos sofrido fortes bombardeamentos aéreos e de obuses disparados por tanques israelitas desde as primeiras horas da manhã de sábado, na sequência do ataque de choque do Hamas através do muro de separação de Israel. Calcula-se que o número de mortos e feridos só nesta cidade seja da ordem das centenas. Os refugiados do norte já começaram a chegar aos milhares; muitos mais ficaram na parte norte da faixa, incapazes ou com demasiado medo de sair.
Samira Qadeeh, de 50 anos, de Khuza’a – uma cidade nos arredores de Khan Younis e uma das localidades palestinianas mais próximas da vedação israelita – fugiu de casa com a família pouco depois do início dos bombardeamentos, receando que o pior lhes acontecesse se ficassem. “Os tanques estavam a bombardear casas com civis lá dentro, como se nos quisessem matar e apagar”, disse ela.
“Todos os vizinhos saíram em grandes grupos, as crianças choravam e gritavam ao som dos bombardeamentos”, continua. “Eu gritava às pessoas para andarem depressa, para que os aviões de guerra não disparassem os seus mísseis contra nós”. Acabaram por encontrar o caminho para uma escola da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), na esperança de aí estarem mais seguros, mas com a escala da destruição que as bombas israelitas estão a causar na faixa, o terror ainda permanece.
“Não é fácil deixar a nossa casa com os nossos filhos e mudarmo-nos para um lugar desconhecido onde podemos não conseguir dormir e onde podemos não ter tudo o que precisamos, mas a ocupação israelita não se preocupa com isso”, disse Samira. “Só se preocupa com o assassínio e a deslocação”.
Salim Sa’eed, de catorze anos, também é de Khuza’a e estava em casa com os seus dois irmãos quando começaram os bombardeamentos. “Ouvimos os estrondos e a minha irmã quis olhar pela janela para ver se alguém estava a festejar com fogo de artifício. Mas eu senti que era um bombardeamento e não uma celebração, por isso gritei-lhe para entrar para não se magoar. Sentei-me com o meu irmão mais novo num quarto e esperei que a minha mãe voltasse. Os sons das bombas nunca paravam”.
‘Em Gaza não há lugar seguro, mas estamos a tentar sobreviver’
Há duas noites, na mais profunda escuridão, várias famílias de Khan Younis foram completamente destruídas. As famílias Al-Shaer e Al-Astal perderam um total de mais de 20 pessoas, incluindo mulheres e crianças. Ambulâncias e veículos da defesa civil vieram à procura de pessoas para socorrer, mas não restou ninguém vivo.
Khalid Salem, 40 anos, era um vizinho próximo dos Al-Astals. Estava a ver televisão com a família quando ouviram o barulho estrondoso de um ataque de míssil, que danificou parcialmente a sua própria casa.
“Ouvi pessoas a gritar bem alto lá fora”, disse ele. “Saí a correr e fiquei chocado ao descobrir que o bombardeamento tinha atingido a casa dos nossos simpáticos e amigáveis vizinhos. Chorei muito quando ouvi alguém a gritar e a chamar por alguém que o salvasse.
“Ambulâncias e veículos da defesa civil vieram retirar os feridos e os mártires do local”, continuou Salem. “Toda a gente gritava, todos nós chorávamos com as cenas a que assistíamos. A coisa mais difícil que se pode testemunhar é ver os nossos amigos a saírem como corpos queimados.”
Salim Sabir, 35 anos, deixou a sua casa na zona de Abasan Al-Kabira com a mulher e os quatro filhos nas primeiras horas da manhã de domingo. “A primeira noite da guerra foi muito difícil”, disse ele. “Os sons dos mísseis consecutivos aterrorizavam os meus filhos. Alguns deles não conseguiam ir a lado nenhum sozinhos em casa, pensando que iam morrer sozinhos ou que nós íamos morrer e deixá-los sozinhos. Estes pensamentos trágicos que vieram à mente dos meus filhos fizeram-me procurar um lugar mais seguro para eles, para que não se magoassem”.
Sabir e a sua família, tal como milhares de habitantes de Khan Younis, procuraram abrigo nas escolas da UNRWA na zona ocidental da cidade, que são normalmente consideradas como um dos locais mais seguros em Gaza – mas pelo menos 18 dessas escolas em Gaza foram já gravemente danificadas pelos ataques israelitas nos últimos dias, duas das quais estavam a ser utilizadas como abrigos de emergência.
“As escolas não são adequadas para dormir ou ficar durante vários dias, mas não temos alternativas”, disse Sabir. “Precisamos de muitas coisas, como comida, bebida, cobertores e roupas. Além disso, há um grande número de pessoas aqui e toda a gente está preocupada com os seus familiares e com as suas casas e assustada com o que está a acontecer fora da escola. Não há lugar seguro em Gaza, mas estamos a tentar sobreviver à guerra”.
No meio de tudo isto, Khan Younis está a sofrer de falta de eletricidade desde o primeiro dia da guerra. Esta situação deve-se ao facto de Israel ter apertado o cerco que impôs à Faixa de Gaza nos últimos 16 anos, impedindo a entrada de combustível e de água. Nos primeiros quatro dias de guerra, o horário da eletricidade era de 3 horas de funcionamento e 26 horas de interrupção, mas na quarta-feira, a autoridade de eletricidade de Gaza declarou que já não era capaz de manter a central eléctrica a funcionar nem sequer durante alguns minutos. Os geradores privados são agora a única fonte de eletricidade, e também estes deixarão de funcionar em breve.
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