Preto e branco / Axadrezado / Em todo o lado

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Eu não sou daqui, sou de Gondomar

Transeunte

 

Se foram os encantos espirituosos de Van Dyck que o ascenderam pela corte à admiração libertina das senhoras, não se poderá por aí reconhecer um carácter meritório e atractivo da boa-ventura, quase universal, ou universal mesmo, se considerarmos apenas como variações sobre a mesma alegria obstinada as especificidades de cada cultura?

Daí facilmente se poderia concluir uma qualquer naturalidade à ordem hierárquica humana, mas talvez fosse esse o facilitismo do erro. Ou talvez naturalidade não tenha coincidência alguma com justiça, outra noção universalizada pela subjectividade da experiência.

Impossibilitado que estou, por todos os factores possíveis, de discorrer, hipotetizar ou analisar sobre variáveis infinitamente variáveis, em especialidade ou generalidade, variáveis essas que creio poderem ser apreendidas por qualquer leitor, ouvinte, observador ou tacteante atento que tenha contacto com a ideia através de que linguagem seja; poderei então escudar-me nessa impossibilidade para saltar sobre as causas comuns do sempre e as ilações respectivas do passado para assim propôr a desordem aparte as epistemologias da justiça e da natureza (“natureza da série”, oiço agoríssima na aula): ou seja, ainda que um qualquer encanto proveitoso e desejável para que o tome como praticante, em relação mútua ou não, mesmo que esse encanto, chamo-lhe agora assim, mais ou menos intuitivo e/ou trabalhado, molde o círculo da órbita relacional, e mesmo que esse encanto seja universalizável a ponto da popularidade numa dada amostra, global ou local; mesmo que assim seja, não é do encanto que trata a opressão, mas do desencanto. Da solidão social não adviria ostracismo, e além do lazer haverá a subsistência para quem a necessite e não tenha como a garantir só. Nem da união impopular dos impopulares adviria golpe de ressentimento, e presume-se de toda a forma que, não havendo o chamariz dos encantos dos seus elementos, essa união não se daria de todo. Se se desse, outros encantos se formariam, na flexível fluidez da liberdade do espírito, de tal maneira que os círculos seriam vários, de tal maneira que, descoberta a nossa própria popularidade em meios análogos, segundo códigos mais próximos (ou inexistentes), não houvesse sequer o ressentimento combustível do golpe a deixar ser. Viver e deixar viver, mote simples, que quem o profere o não vive. E talvez aí chegássemos à conclusão de que não é um encanto qualquer que é universal, mas que é a possibilidade de encantar em específico que é propriedade de todo e qualquer indivíduo.

O que por ora sucede, como antes, que tem impossibilitado a libertação geral das grilhetas sociais, sem que a resposta única seja uma edificante mas nem por isso menos amarga solidão (como é o meu caso), é a hegemonização hierárquica indevida do encanto, para o qual se impõe um padrão e se veda alternativa de livre escolha, simultânea com um dogma de uma selecção (natural, divina, familiar, há-as de todos os feitios) que dita a qualidade intrínseca encantadora de uns e o eterno e imutável (o meio social, não sabendo lidar com o tempo contínuo, tende a fantasiar um estanque, a ficcionar nocivamente a paragem do imparável, a captura – os momentos, por exemplo – do incapturável, e por aí diante, como dizendo que pessoa é assim, até a primeira pessoa, em auto-depreciação espampanante e escandalosa) defeito de encanto de outros.

Isto acontece também, e sobretudo, nos meios declaradamente libertários, ou contra-hegemónicos, o que seja, ainda que a reacção de animaizinhos feridos dos elementos da sua matilha de cães de guarda perante a primeira observação que não seja aclamação elogiosa sem reserva (e a identificação institucional dos elementos obvia-se quando a observação se cinge a algo que lhes seria alheio entre o meio, ou até a pessoas por quem têm antipatia com quem partilham espaços e religi-ismos – não se trata sequer da desculpável defesa de um amigo idiota por quem se nutre carinho, mas da convenção de uma identidade territorial partilhada com alguém que se odeia por quem se intercede) faça por tentar, pelo sofisma, ocultá-lo (como acontece no Indymedia, por exemplo, a que só falta um papel carimbado e assinado para se oficializar como gabinete estatal para a contra-informação; nem o digo só partindo de mim, a abertura desta própria página web mostra-o de imediato a qualquer curioso visitante desinformado).

O mote é então, mau grado as declarações dos comunicados, viver e deixar morrer, viver italicizado pela sua imprecisão, pela sua conotação de uma mesquinhez em que o espírito não acompanha os processos biológicos do organismo senão para assegurar a sua manutenção, como sendo os corpos um carro ou um elevador, funcionais mas para todos os efeitos mortos, por mais ruidosas ou vistosas que sejam as provas observáveis de função. Desse mote não creio pudesse ser então esperado algo que não a reciprocidade do ressentimento a que já se aludiu. Será contraproducente? Apenas se, além dos produtos, se assumir uma semelhança dos meios (ou seja, do sistematizável, como todo o pensamento hierárquico, não se refere por meio qualquer acção específica circunstancial, tal como a circunstância pode ser única ou repetível). Quem aja a liberdade não necessita de meios. A matilha tem então de morrer, mais ou menos abruptamente. Para que se possa viver sem a ânsia da represália, para que se deixe viver enquanto se vive. E de novo se esperam os latidos uníssonos da massa uniforme – ergam-se as muralhas, como as de simulações de impérios de calças rasgadas e madeixas coloridas (e pensamento tão mais arcaico que o que ocupa a vasta maioria dos corpos de exterior vestuário sem o vinco do batalhão da revolta controlada).

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