Um conjunto de artistas lançou, a partir da Bienal de São Paulo, um manifesto a favor da manutenção da ligação do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova ao Anozero – Bienal de Coimbra.
São Paulo, 20 de setembro de 2023
Nós, que assinamos este manifesto, oferecemos as seguintes reflexões para vossa consideração:
Acreditamos que se deu uma mudança muito significativa no entendimento e na prática das bienais internacionais de arte contemporânea. Já não são o lugar para catapultar artistas e modos de produção visual, tornando-se agora num espaço muito significativo para a reflexão sobre o presente; lugares para fazer avançar a forma como nos envolvemos com diferentes pensamentos e, claro, espaços para repensar diferentes comunidades. As bienais internacionais de arte têm historicamente ligado indivíduos de diferentes nações, línguas e raízes, tentando dar conta do que acontece em diferentes lugares onde as pessoas vivem, trabalham, pensam e atuam sob diferentes condições históricas e culturais. Hoje em dia, a tarefa das bienais transformou-se radicalmente num espaço de eventos, num lugar de acontecimentos, de ações, de discussão e de expansão dos entendimentos das linguagens visuais, das suas poéticas: daquilo que só pode acontecer ali e em mais lado nenhum. Neste sentido, as bienais não são a encenação de materialidades, mas o lugar de produção de conteúdos: tornaram-se no espaço onde se desenham questões a partir de uma ponte com o Outro, de diferentes conceções do mundo e, portanto, de si próprio e das suas comunidades. A Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra – Anozero, em Portugal, tem desempenhado um papel fundamental, apesar da sua juventude, e tem conseguido ter um impacto significativo no atual contexto das grandes exposições internacionais, pois mostra que nasceu como um espaço onde a diferença e a relação entre diferentes formas de entender a vida, a arte e o presente se conjugam para enfatizar processos históricos em transformação. Esta poderosa bienal tornou-se num importante palco no panorama artístico europeu, uma vez que representa um excecional vetor de difusão da arte portuguesa, acolhe um dos principais eventos da Península Ibérica e dá visibilidade às mais notáveis obras atualmente produzidas e apresentadas (expondo, de entre outros, artistas como Fernanda Fragateiro, Francis Alÿs, William Kentridge, Dominique Gonzalez- Foerster, Anna Boghiguian e Ragnar Kjartansson). Apesar disso, um aspeto importante coloca atualmente em risco a continuidade da Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra: a possibilidade de a administração do Mosteiro de Santa Clara-a- Nova, o seu principal local de realização, ser transferida para a atividade privada, num processo que retiraria ao Anozero o direito de utilização deste monumento emblemático da cidade, provocando uma viragem contra a continuidade de um projeto cultural de grande significado local, nacional e internacional. Como artistas participantes nas primeiras edições dessa Bienal, pudemos experimentar e viver a recuperação de um sítio arquitetónico de exceção, trabalhando com uma valiosa equipa de conceção e montagem, ligando esse espaço a um público alargado (não necessariamente iniciado na arte contemporânea), que esteve afastado de tal experiência durante mais de um século — período em que o Mosteiro esteve sob a custódia do exército português. Esta impressionante ocupação, fruto de um gesto arrojado do Anozero, simboliza um recomeço memorável e fundamental. Por tudo isto, consideramos que a Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra – Anozero deve ter a sua ligação ao Mosteiro garantida e preservada e estar na linha da frente do movimento de reabilitação deste extraordinário espaço da cidade. Dito isto, gostaríamos de afirmar o seguinte: A Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra – Anozero é um dos eixos atuais mais promissores, oportunos e consolidados para a dinamização de reflexões entre os agentes da comunidade artística internacional; Esta comunidade não é uma comunidade localizada no aparelho ideológico da Europa Central, mas abriu um caminho sem retorno para expandir o pensamento crítico entre Portugal, a América Latina e o mundo; A Bienal e o seu principal espaço, o Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, são em si mesmos uma entidade única, pelo que não podem ser separados ou desvinculados do seu fundamento cultural; nem podem ser separados, como marco identitário, da cidade de Coimbra. Em todas as suas edições, a presença de artistas sul-americanos e latino-americanos tem sido fundamental. Segue-se uma lista dessas participações (que será, sem dúvida, alargada em edições futuras): 2015 (curadores: Pedro Pousada, Luís Quintais e Carlos Antunes): Adriana Varejão, Isaura Pena. 2017 (curadoria: Delfim Sardo com Luiza Teixeira de Freitas): Jonathas de Andrade, Juan Araujo, Lucas Arruda, Paloma Bosquê, Rubens Mano. 2019 (curadoria: Agnaldo Farias com Lígia Afonso e Nuno Rocha): Ana María Montenegro, Ana Vaz, Cadu, Daniel Senise, Erika Verzutti, José Bechara, José Spaniol, Laura Vinci, Luis Felipe Ortega, Magdalena Jitrik, Marilá Dardot, Maya Watanabe. 2021–2022 (curadores: Filipa Oliveira e Elfi Turpin): Aurélia de Sousa, Beatriz Santiago Munoz, Daniel Steegmann Mangrané, Gabriel Chaile, Jarbas Lopes, Laura Huertas Millán, Lygia Pape, Nelson Pereira dos Santos. Se for quebrada a ligação entre o Mosteiro de Santa Clara-a-Nova e a Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra – Anozero, perder-se-á a identidade que deu lugar ao entendimento do conceito de Bienal, da cidade de Coimbra e do Mosteiro como uma engrenagem que movimenta as dinâmicas vivas das práticas artísticas contemporâneas num tempo e num espaço específicos. Manifestamos a nossa discordância em relação ao processo de fazer do Mosteiro um local que urge recursos económicos e turísticos para a cidade, contra a necessidade de manter este espaço como um local onde, de dois em dois anos, intelectuais, curadores, artistas, estudantes, escritores, profissionais de várias disciplinas e cidadãos se encontram para pensar num mundo, revelar mundos e imaginar as condições em que estes podem acontecer. Registamos, assim, com este manifesto, a nossa total rejeição à condução de um processo que, surpreendentemente, desconsidera o papel e a importância que a Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra – Anozero representa para a recuperação simbólica do Mosteiro, para a expansão das experiências culturais em Coimbra e em Portugal e para a afirmação de um espaço de reflexão no circuito internacional das bienais de arte contemporânea.
Autores do manifesto e primeiros subscritores: Rubens Mano, Luis Felipe Ortega