A Guilhotina não vai à Feira Anarquista do Livro de Lisboa (notas sobre orientalismo para centrar Gaza)

Francisco Ulrike em Guilhotina.info
Imagens e recomendações de algumas entrevistas e reportagens em https://guilhotina.info/2025/10/03/fal2025-orientalismo/

 

A Feira Anarquista do Livro vai ter lugar nos dias 4 e 5 de Outubro na Casa da Achada, em Lisboa. A Guilhotina desde cedo comunicou o interesse em montar uma banca com zines sobre a Palestina e temas relacionados – de artigos nossos a textos de figuras da resistência anti-imperialista na região e no mundo (como Leila Khaled e Malcolm X, entre outros). À semelhança do que já tínhamos feito na Feira do Livro de Lisboa, em Junho, todos os fundos reverteriam para um projecto comunitário em Gaza.

Um par de semanas depois, recebemos uma resposta negativa de parte da organização da Feira – aparentemente, a Guilhotina não é anarquista o suficiente.

Sejamos claros – na Guilhotina, nunca procurámos o prestígio nem nunca moderámos as nossas posições para sermos aceites por este ou aquele sector. A recusa da nossa presença na Feira não é, por si só, digna de notícia – a única coisa a lamentar é termos menos uma oportunidade para recolher fundos para as nossas irmãs e irmãos palestinianos em Gaza. No entanto, este infortúnio é um bom pretexto para levantar alguns pontos pertinentes sobre jornalismo, anarquismo, orientalismo e resistência na Era do Genocídio.

A Guilhotina surgiu, à semelhança de outros projectos de comunicação independente, no período de intensas mobilizações populares entre 2011 e 2013. Parte de nós estava firmemente no campo libertário, enquanto outros bebiam dessa “maléfica” poção do marxismo – ou até do maoísmo. No entanto, nunca vimos a Guilhotina, um projecto de informação independente, como uma plataforma para disseminar esta ou aquela ideologia; pelo contrário, sempre procurámos servir ao nosso público a realidade nua e crua para que cada um e cada uma possa chegar às suas próprias conclusões – fazendo-o mesmo quando a realidade não serve necessariamente as narrativas das correntes pelas quais sentimos mais afinidade.

 

Orientalismo

Hoje em dia, supomos que seja claro que não há acontecimento mais importante, e central para a História da Humanidade, do que o Holocausto em curso em Gaza há mais de 720 longos dias. Apesar de todo o tempo que houve para nos informarmos e libertarmos as nossas mentes dos muitos mitos da propaganda ocidental, continua a prevalecer no seio das massas “pró-Palestina” (ou anti-genocídio) uma visão profundamente orientalista da região e dos movimentos que aí resistem ao imperialismo ocidental. E o movimento anarquista não é excepção.

O conceito de orientalismo foi cunhado por Edward Said em 1978. Como explica Namrata Verghese no seu artigo “What Is Orientalism? A Stereotyped, Colonialist Vision of Asian Cultures”:

«No seu livro pioneiro Orientalismo, de 1978, o académico [e professor] de estudos pós-coloniais Edward Said definiu o orientalismo como «um estilo de pensamento baseado na distinção ontológica e epistemológica entre “o Oriente” e “o Ocidente”». Em termos simples, o «Oriente» é uma invenção colonial. O orientalismo é uma colecção de binários — entre «Oriente» e «Ocidente», estrangeiro e familiar, civilizado e incivilizado, primitivo e progressista, colonizador e colonizado, eu e o Outro. É um sistema de representação através do qual o Ocidente produziu o Oriente como o seu oposto, o seu «eu substituto e subterrâneo» — uma terra estranha, atrasada, bárbara, impregnada de misticismo e perigo. (…)

O cerne da teoria de Said é que o orientalismo não é um conceito abstracto — não é apenas uma «fantasia europeia irrealista» —, mas «uma relação de poder, de dominação». O «investimento material» do Ocidente na criação e manutenção da estrutura do orientalismo sancionou a violência do imperialismo europeu. (…)

É a retórica generalizada que retrata o imperialismo militar dos EUA como «uma luta pelos direitos das mulheres» que precisam desesperadamente de ser salvas das suas pátrias bárbaras pelos ocidentais cristãos e brancos.»

É graças a esse orientalismo que o Hamas, o Hezbollah e a República Islâmica do Irão são olhadas como forças igualmente autoritárias, conservadoras e opressoras das mulheres e das minorias. Estas frequentes críticas, simplistas e generalizantes, mostram incompreensão da complexidade e das diferenças entre estas várias realidades.

 

As “mulheres oprimidas” em resistência

No Ocidente, a ideia da opressão da mulher nas sociedades árabes vem frequentemente associada à ideia de obrigatoriedade da utilização do hijab. A realidade, no entanto, pode surpreender até quem, por cá, tenta libertar-se das amarras do orientalismo.

Quem ainda não deixou de seguir os e as jornalistas palestinianas em Gaza, para proteger a sua sanidade mental, sabe que a Bisan Owda, de cabelo descoberto, nos traz há 720 dias relatos regulares do genocídio em Gaza.

E, não, isto não é de agora – não é porque os “homens do Hamas” estão demasiado ocupados a resistir ao genocídio em curso para oprimir as suas mulheres e as obrigar a vestir-se como eles querem. E, sim, a maioria das mulheres em Gaza usa hijab, mas a Bisan não é caso único – Hind Khoudary e outras mulheres de Gaza aparecem regularmente nos nossos ecrãs de cabelo solto. De muitas delas, nunca saberemos os nomes.

Num protesto recente contra a evacuação da Cidade de Gaza, organizado pelas tribos e clãs do norte de Gaza, uma mulher sem hijab tomou a palavra para fazer uma intervenção. Incrível como estes selvagens muçulmanos se atrevem a dar voz a mulheres que têm o desplante de não tapar o cabelo.

E o padrão repete-se através do Eixo da Resistência. A 14 de Junho, no início da Guerra dos 12 Dias entre o regime sionista e o Irão, uma mulher sem hijab clamou pelo encerramento do Estreito de Ormuz e a construção da bomba atómica desde o meio dos protestos nas ruas de Teerão.

Isto não é uma anomalia. A vasta maioria do Ocidente ignora que, na sequência dos protestos massivos em 2022 e 2023, as autoridades iranianas deixaram de aplicar a obrigatoriedade de utilização do hijab em Teerão e noutras cidades. Hoje, qualquer pessoa que passeie na capital iraniana cruzar-se-á com centenas de mulheres sem hijab e vestidas com estilos bastante diversos. 

Um par de dias depois, outra mulher iraniana, Sahar Emami, foi protagonista de um desafiante acto de resistência contra a barbárie do Império. A 16 de Julho, o regime sionista anunciou que iria bombardear a sede da IRIB, a emissora estatal iraniana. Emami, pivô da IRIB, recusou-se a abandonar o seu posto e continuou a emissão. O momento do ataque foi registado em directo. Emami sobreviveu e a emissão foi retomada pouco depois.

O seu acto simbolizou não só o seu compromisso com o jornalismo, mesmo quando a sua vida estava em risco, mas também a recusa do povo iraniano em render-se à barbárie do Império. Sahar Emami tornou-se um ícone da resistência – ao menos para quem não é racista demais para reconhecer um acto de resistência quando este é protagonizado por uma mulher com hijab.

No Irão como noutros territórios dominados pelas forças do Eixo da Resistência, muitas vezes são as mulheres – com e sem hijab – quem tem os discursos e as práticas mais radicais.

Veja-se o caso da comunidade xiita do Líbano, a base de apoio do Hezbollah, onde muitas mulheres não usam hijab no dia-a-dia. Numa imagem poderosa das celebrações do cessar-fogo, em Novembro do ano passado, vê-se uma mulher de cabelo solto e arma na mão em frente a um enorme retrato de Nasrallah.

A 26 de Janeiro, após 60 dias de “cessar-fogo”, milhares de civis libaneses desarmados regressaram a pé às suas aldeias no sul do Líbano. Um dos actos mais destemidos de resistência teve lugar na aldeia de Maroun al-Ras e foi protagonizado por Zahraa Kobeissy, uma jovem mulher que enfrentou sozinha um tanque Merkava e vários soldados da ocupação. As imagens são inacreditáveis, e são exemplo de uma coragem e de uma práxis de resistência que não encontra paralelo em quase nenhum movimento ou organização no Ocidente – anarquista ou outra.

No entanto, há quem tenha o descaramento de achar que esta mulher não é livre por usar véu.

Nada disto significa que as mulheres na região não sintam formas de opressão nestas sociedades – tal como acontece nas nossas. A verdade é que estas mulheres são mais livres do que qualquer um e qualquer uma de nós.

 

O autoritarismo do Hamas

O mito do autoritarismo que, no Ocidente, envolve estas forças depende também ele de um profundo desconhecimento da realidade no terreno.

Por cá, a maioria achará que o Hamas governa Gaza com mão de ferro desde que venceu as últimas eleições palestinianas, em 2006. No entanto, na “ditadura do Hamas” continuou a haver liberdade de actuação para inúmeras forças da sociedade palestiniana – excepto, claro, as colaboracionistas com a ocupação israelita, que recebem o tratamento apropriado.

Os próprios sionistas o confirmaram quando tentaram que fosse retirada a nomeação para os Emmys a um documentário da jornalista palestiniana Bisan Owda, alegando que esta tinha ligações à FPLP – em causa estava a participação da Bisan em vários eventos, entre 2014 e 2018, de uma organização estudantil com alegados laços à FPLP.

É extraordinário como esses tiranos islamistas permitem que a juventude de Gaza se organize em forças de esquerda.

Da mesma forma, nos quase 20 anos de “ditadura islâmica”, os cristãos de Gaza, uma das comunidades cristãs mais antigas da História, continuaram a gozar da sua liberdade de culto, e as suas igrejas não foram encerradas nem destruídas pelos extremistas islâmicos.

Os cristãos, as mulheres e a comunidade LGBT são frequentemente invocadas no Ocidente como objectos dignos da nossa solidariedade face à opressão do Hamas. No entanto, a real ameaça à existência destes sujeitos não é o Hamas – mas as bombas ocidentais, lançadas diariamente pela aviação sionista há quase 2 anos, perante a inacção da generalidade das sociedades ocidentais.

 

Liderança colectiva

Helena Cobban, de nacionalidade britânico-americana, é uma escritora e investigadora no campo das Relações Internacionais. Ao longo da sua vida, dedicou muito tempo a compreender a resistência palestiniana, tendo entrevistado muitos líderes de todas as principais organizações palestinianas. Numa recente entrevista ao canal Dialogue Works, Cobban explicou o sistema de liderança colectiva do Hamas:

«O que constatei ao longo das minhas entrevistas e pesquisas com [os líderes do Hamas] é que eles sempre enfatizaram a colegialidade, a necessidade de uma liderança colegial – porque foram vítimas de tantos assassinatos ao longo da sua história (…). Mesmo que os israelitas tivessem conseguido eliminar todas as pessoas reunidas no Qatar há duas semanas, teria surgido outra geração, porque eles não dependem de uma liderança carismática, mas de uma liderança colectiva eficaz.»

O mesmo acontece com o Hezbollah e o Ansar Allah. Todas estas organizações têm líderes ou secretários-gerais, mas a liderança toma as decisões colectivamente.

Na mesma entrevista, Helena Cobban também fala do lugar das mulheres na Faixa de Gaza governada pelo Hamas:

«O Hamas tem ideias muito interessantes sobre a inclusão das mulheres, também na vida religiosa. Estive em Gaza (…) em 2006. Fui com as mulheres do Hamas, que têm redes muito bem organizadas, visitar os seus jardins de infância e algumas das escolas e projectos por elas geridos. Naquela altura tinham, creio, duas ministras, quatro deputadas eleitas, e uma dessas ministras, a Dra. Jamila Shanti, era uma mulher formidável, uma organizadora realmente fantástica.

As pessoas não sabem isto sobre o Hamas, o seu compromisso com o empoderamento e a inclusão das mulheres (…). Vozes dentro do Hamas têm dito que uma mulher poderia ser a líder nacional, não apenas uma deputada.»

E, para todos aqueles que desconsideram as vozes e as acções destas mulheres simplesmente porque as suas posições não vão de encontro à nossa iluminada concepção de sociedade ideal, só há uma coisa a dizer: não há nada de feminista nisso.

 

Nasrallah e Chomsky

Outro facto interessante ignorado nos nossos meios é que Noam Chomsky, em 2006, visitou o Líbano e encontrou-se com Hassan Nasrallah. Durante o encontro, Nasrallah escutou avidamente, tomando constantemente notas do que Chomsky dizia, e mais tarde Chomsky referiu-se ao secretário-geral do Hezbollah como um dos “líderes políticos mais inteligentes” que havia conhecido.

O pensamento e a análise da liderança do Hezbollah, sintetizados nos riquíssimos discursos de Nasrallah, foram influenciados pela interacção entre estas duas figuras importantes do pensamento anti-hegemónico.

Vinte anos depois, provamo-nos cada vez mais incapazes de escutar vozes de povos em luta noutras partes do mundo e de compreender, valorizar e aprender com formas de resistência diferentes das nossas. E isso é um profundo desrespeito para com as gerações anteriores da resistência no Ocidente, em que figuras importantes do pensamento anarquista (e não só), como Chomsky (e não só), se atreveram a dialogar com estas forças, em vez de lhes fecharem a porta com críticas simplistas.

 

Aashura e a Batalha de Karbala

As análises da maioria da esquerda e do anarquismo ocidentais falham num outro ponto importante – entendem o “islamismo” como um monolito. Mais uma vez, ignoram a complexidade da realidade concreta e a multiplicidade de correntes, abordagens e interpretações do Islão.

O Islão do Hezbollah, por exemplo, não podia estar mais longe do Islão dos regimes saudita ou afegão. Um texto que – caso tivéssemos sido aceites na Feira – teríamos na nossa banca, “Hezbollah, Anti-Imperialism and the Compatible Left”, de Sammy Ismail, dirige-se à esquerda ocidental, mas muitos dos argumentos a que responde ouvem-se frequentemente também nos meios anarquistas. Nele, Ismail explica de forma sucinta a centralidade da Batalha de Karbala e da Aashura na narrativa religiosa e política do Hezbollah.

«No caso do Hezbollah, a práxis e a teoria políticas do anti-sionismo e do anti-imperialismo foram desenvolvidas com referência ao Épico de Karbala, no qual Al-Hussein combateu ferozmente contra a tirania dos Yazid. Esta narrativa cultural é intrínseca aos xiitas libaneses, ainda antes da fundação do Hezbollah. A importância cultural e os rituais religiosos da Aashura não caíram do Irão de pára-quedas com a Revolução Islâmica. Aashura é um momento decisivo da história árabe. Simboliza uma revolução indígena contra a tirania do califato islâmico: os descendentes do Profeta disputaram a distorcida interpretação do Islão que fabricou legitimidade política para califas tiranos, ao fazerem triunfar a interpretação autêntica do Islão que promove o ideal normativo de justiça. (…)

Aashura (…), ao contrário das narrativas religiosas que promovem o pacifismo, referidas por Marx na sua metáfora do ópio, serviu como um catalisador para as massas da comunidade xiita libanesa se erguerem em armas contra projectos imperialistas.

O Hezbollah tirou proveito do Épico de Aashura que desde há muito foi transmitido de geração em geração nesta comunidade. A narrativa foi projectada alegoricamente para a política contemporânea no seguimento de uma análise científica das contradições materiais, expressamente elaboradas no Manifesto de 2009. O rancor cultural contra a injustiça e a tirania dos Yazid levou os clérigos do Hezbollah a compará-las à hegemonia do Império norte-americano, consequentemente mobilizando centenas contra os proxies do imperialismo. Esta táctica de mobilização provou-se excepcionalmente bem-sucedida na consolidação do maior actor não-estatal do mundo, revertendo os contratempos da nação árabe na sua luta contra o colonialismo israelita, e esmagando o pervertido empreendimento takfiri no Levante.»

Sammy Ismail vai buscar um excerto do Manifesto de 2009 para ilustrar o tipo de análise e linguagem utilizada pelo Hezbollah:

«No capítulo sobre Dominação e Hegemonia, lê-se: «As forças do capitalismo selvagem — personificadas sobretudo nas redes monopolistas internacionais de empresas que atravessam nações e continentes, redes de vários estabelecimentos internacionais, especialmente os financeiros, apoiados por uma força militar superior — levaram a mais conflitos e contradições — dos quais não menos importantes são os conflitos de identidades, culturas, civilizações, além dos conflitos de pobreza e riqueza. Essas forças do capitalismo selvagem transformaram-se em mecanismos de semear discórdia e destruir identidades, além de imporem o tipo mais perigoso de roubo cultural, nacional, económico e social. A globalização atingiu a sua faceta mais perigosa quando se transformou numa força militar liderada por aqueles que seguem o esquema ocidental de dominação — o que se refletiu principalmente no Médio Oriente, no Afeganistão, Iraque, Palestina e Líbano (…).»

Parece-vos que uma organização de direita, conservadora e reaccionária, escreveria algo assim no seu manifesto?

 

Conflitos sectários e sectarismo

A narrativa ocidental esforça-se por pintar, por um lado, as guerras na região como conflitos sectários (entre judeus e árabes, xiitas e sunitas, etc.) e, por outro, as forças do Eixo da Resistência como forças sectárias, movidas pelo ódio aos judeus ou aos sunitas – ofuscando assim o papel central do imperialismo ocidental nos conflitos que assolam a região há mais de um século.

Esta narrativa não podia estar mais longe da realidade. Vejamos o exemplo da sangrenta guerra civil libanesa que durou de 1975 até 1990. Durante estes 15 anos, além de conflitos armados entre várias milícias e grupos paramilitares, tiveram lugar no Líbano mais de duas dezenas de massacres contra civis das diferentes comunidades étnicas e religiosas. O mais sangrento de todos teve lugar em Setembro de 1982 no bairro de Sabra e no campo de refugiados de Shatila, na capital libanesa, onde cerca de 3500 palestinianos e xiitas libaneses foram mortos pelos Falangistas e as Forças Libanesas, sob supervisão de forças israelitas, norte-americanas e francesas.

O Hezbollah, fundado em 1982, é uma das únicas forças libanesas (se não a única) que não foi responsável por massacres ou violência sectária durante a Guerra Civil, nem desde então. Na verdade, a única organização libanesa com que o Hezbollah teve um conflito armado é xiita. Entre 1988 e 1990, a Guerra dos Irmãos opôs o Hezbollah e o movimento Amal, que entre 1985 e 1988 tinha participado com as forças sírias numa campanha contra a Organização pela Libertação da Palestina nos campos de refugiados palestinianos. Entretanto, as duas organizações xiitas libanesas reconciliaram-se e forjaram uma aliança que dura até hoje.

O Hezbollah não alimenta nem se alimenta de tensões sectárias. Pelo contrário, sempre priorizou a convivência entre as várias componentes da sociedade libanesa e a defesa da unidade territorial do Líbano, reservando as balas para o inimigo sionista e o Império liderado pelos EUA – esse, sim, responsável por incitar tensões sectárias e apoiar (até hoje) forças com uma história manchada de sangue libanês e palestiniano, como a Falange e as Forças Libanesas.

Se o Hezbollah fosse sectário como a maioria acha, não teria uma aliança de longa data com o Movimento Marada, um partido cristão libanês, e a sua existência não seria defendida por amplos sectores de todas as confissões da sociedade libanesa. Da mesma forma, não teria intervindo na “guerra civil” síria contra a miríade de grupos salafistas e takfiris financiados e armados pelo Império e os seus proxies na região (Turquia, Qatar, Arábia Saudita e EAU), lutando para impedir a destruição de lugares sagrados, as limpezas étnicas das comunidades consideradas hereges pelos takfiris (não só os xiitas, mas também os alauitas, os druze e as várias confissões cristãs) e a entrega da sociedade síria à barbárie do Império.

Na mesma linha, a República Islâmica do Irão, liderada pelo “tirânico” Ayatollah, respeita a liberdade de culto de comunidades judaicas, cristãs e sunitas que ali vivem há séculos, e a quem é garantida representação política no Parlamento. Além disso, fazem parte da sociedade iraniana múltiplas etnias, que conservam as suas línguas, culturas e festividades.

Outra prova do carácter não-sectário da República Islâmica do Irão está no apoio à resistência palestiniana. Desde a Revolução Islâmica de 1979, o Irão apoiou de forma consistente todas as forças da resistência contra o imperialismo ocidental na região – independentemente da sua orientação política e religiosa.

Lowkey – um rapper britânico de origem iraquiana, jornalista, anarquista e uma das vozes mais acutilantes na defesa do povo e da resistência palestiniana no Reino Unido – sintetiza-o de forma clara:

«O Irão apoiou de uma forma que nenhum outro Estado do mundo apoiou, materialmente – não emocionalmente, não simbolicamente, não diplomaticamente, não com ONGs, não com documentários, mas materialmente – a resistência palestiniana. Todas as facções, até a Fatah, mesmo depois de divergirem politicamente.» Fonte

O Holocausto em curso na Faixa de Gaza desmistificou de forma definitiva o mito em torno do carácter sectário dos conflitos na região. Desde 7 de Outubro de 2023, as únicas forças que intercederam de forma decisiva ao lado da resistência palestiniana, maioritariamente sunita, foram forças todas elas xiitas – o Hezbollah no Líbano, o Ansar Allah no Iémen, a República Islâmica do Irão e as milícias iraquianas Kata’eb Hezbollah.

A conclusão está aos olhos de quem quiser ver: o único sectarismo real é o nosso.

 

Solidariedade Selectiva

Numa Era em que o espectáculo tem primazia, a luta é performativa, a política é fetichizada e os grandes debates se resumem a exercícios de abstracionismo, a solidariedade não é uma prática concreta concedida a todos os povos e forças que resistem à barbárie do Império – é reservada apenas a forças e organizações com quem partilhamos uma qualquer afinidade ideológica.

Embora dentro do movimento anarquista seja bastante mais raro, nos meios de esquerda é possível encontrar, ainda que não seja comum, expressões de apoio à FPLP (muito mais do que ao Hamas), precisamente por a FPLP ser uma força de raiz marxista-leninista e, por isso, admissível no campo da esquerda – e digna da nossa solidariedade.

Esta é uma seletividade profundamente desconectada da realidade no terreno, onde as Brigadas Mártir Abu Ali Mustafa, o braço armado da FPLP, combatem as forças da ocupação ombro a ombro com as Al Qassam, a Jihad Islâmica e uma dezena de outras forças.

E é curioso como, dentro dos meios anarquistas, há tanta gente pronta a engolir sapos relativamente a alguns projectos, enquanto outros são descartados sumariamente sem sequer serem compreendidos. Afinal, porque é que a imagem que temos das forças de resistência islâmica é a que é, mas quando se trata dos curdos de Rojava se engole avidamente o culto ao líder e a aliança com os EUA? Afinal, estas duas coisas não estão muito de acordo com o “código de bom anarquista”…

 

A «Esquerda Compatível»

Nas últimas décadas, a maioria da esquerda ocidental foi cooptada pela pós-modernidade liberal – e os meios anarquistas não ficaram imunes a essa vaga. Princípios outrora basilares, como o anti-imperialismo, passaram para segundo plano, abrindo caminho a um entendimento cada vez mais individualista da “liberdade” e transformando a “resistência” em algo meramente retórico e performático. 

Sammy Ismail, no artigo “Hezbollah, Anti-Imperialism and the Compatible Left”, coloca-o nestes termos:

«Para enquadrar o discurso e separar as críticas das campanhas difamatórias, é importante introduzir um termo cunhado pelos estrategas da CIA: A Esquerda Compatível. Refere-se aos intelectuais e partidos de esquerda cooptados pela CIA num esforço para fabricar uma esquerda compatível com o imperialismo. A Esquerda Compatível também é comparável à classe neo-compradora, sobre a qual James Petras teoriza em “NGOs: In the Service of Imperialism” (2007). A esquerda compatível é uma esquerda inconsequente: emprega o folclore e a linguagem de esquerda, ao mesmo tempo que garante que o statu quo do imperialismo permanece robusto e incontestado.»

Por cá, o exemplo mais crasso dessa “Esquerda Compatível” é o líder do Livre. Rui Tavares envolve-se de uma aura mística de esquerda e “pró-Palestina”, mas defende com unhas e dentes a existência do projecto colonial sionista e apela à libertação dos reféns israelitas, sem nunca falar dos mais de 10 mil palestinianos nas masmorras da ocupação. Nada de surpreendente para quem, há 14 anos, apoiou que se desse uma lição ao malvado do Gaddafi.

E o Bloco não perde o comboio – é “de esquerda”, mas usa o seu portal, Esquerda.net, para espalhar propaganda imperialista. Em Maio deste ano, publicaram um “artigo” que sugeria que a Rússia tinha roubado até 1,6 milhões de crianças ucranianas, raptadas como parte de uma campanha genocida – um par de dias mais tarde, veio a descobrir-se que, de todas as crianças que haviam sido removidas pelas forças russas, para sua segurança, de zonas de combate, apenas 339 permaneciam em território russo separadas das suas famílias. Outras 101 tinham sido já devolvidas às suas famílias por iniciativa das autoridades russas, assim como 22 crianças que estavam na posse do regime ucraniano foram devolvidas a famílias que procuraram refúgio na Rússia. Entretanto, centenas de crianças refugiadas ucranianas têm desaparecido na Europa sem que ninguém tenha metido um décimo do esforço em encontrá-las.

Para além de ser uma fonte de propaganda anti-Rússia, este portal também seguiu cuidadosamente, durante mais de uma década, a linha do Império sobre a guerra na Síria.

Infelizmente, vários colectivos anarquistas portugueses optaram por fazer o mesmo.

 

Islão e Anarquismo

Mohamed Abdou é um escritor e académico egípcio-canadiano cuja pesquisa se foca em teoria decolonial, estudos islâmicos, anarquismo e resistência indígena. No seu livro Islão e Anarquismo, Abdou desafia duas crenças muito comuns: que o Islão é inerentemente autoritário e capitalista, e que o anarquismo é anti-religioso.

Além disso, Abdou disponibiliza no seu substack vários textos que servem de introdução ao tema. No segundo texto que aí publicou, Abdou explica alguns conceitos básicos do Islão que encontram eco no pensamento anarquista:

«No Islão, taghūt – que representa a queda da humanidade – é um produto de Shaitān, e Satanás não é uma figura abstracta. Shaitān e a sua descendência estão incorporados nas estruturas capitalistas e dos Estados-nação que contradizem abertamente e são antitéticos aos princípios ético-políticos e espirituais islâmicos de justiça. (…)

Não existe o conceito de Estado-nação no Islão. (…) No Islão, venerar o Estado-nação moderno é taghūt porque toda a soberania no Islão pertence a Alá: a soberania de Alá na forma terrena manifesta-se no conceito de uma Ummah generosa, colectiva e sem fronteiras.»

em A War for the Beating Heart of the Ummah, por Mohamed Abdou

 

Abdou explica também a distinção entre o “Islão de baixo” e o “Islão de cima”:

«É essa aversão ao taghūt que leva a Jihad Islâmica Palestiniana (PIJ) e as Brigadas Al-Qassam a serem mais críticas em relação ao capitalismo e a não quererem participar na busca ou no exercício do poder político, em comparação com a ala política do Hamas, por medo de se deixarem intoxicar por ele. O chamado «Islão político» e os nossos mujahideen não são um monólito, as suas formações variam ao longo de um espectro, dependendo das suas interpretações teológicas do Alcorão.

A PIJ e as Brigadas Al-Qassam representam um «Islão de baixo», que visa servir os pobres, as mulheres, os idosos e as crianças, e uma compreensão horizontalista da justiça. Em contrapartida, a ala política do Hamas, ao menos antes da Inundação de Al-Aqsa, seguia um «Islão de cima», que aspirava a integrar-se numa ordem mundial liberal vertical — uma ordem cuja fraude inerente ficou ainda mais evidente desde 7 de Outubro de 2023. Ambas as formas de «Islão político», de baixo e de cima, acabam por admitir que somos susceptíveis de nos envolver em shirk (idolatria) — um caminho para o taghūt — quando juramos lealdade e adoramos qualquer coisa além de Deus.»

em A War for the Beating Heart of the Ummah, por Mohamed Abdou

 

Como diz Abdou num outro texto:

«Enquanto a esquerda euro-americana não dedicar algum tempo a lidar com a sua própria islamofobia e compreender o Islão e a fé no contexto da resistência, a sua análise será sempre lamentavelmente incompleta. Os mujahideen estão a oferecer-nos um roteiro vital e robusto neste momento crítico da batalha, e o Islão não está na periferia, mas no centro da luta.» em The Qurān of the Resistance, por Mohamed Abdou 

 

Aos anarquistas iluminados

Recentemente, durante a Guerra dos 12 Dias contra o Irão, fomos acusados de termos passado de anarquistas a “direita conservas”.

Na altura, envidámos esforços para desmontar algumas das principais mentiras da propaganda ocidental sobre o Irão. Não é preciso ser anarquista ou de esquerda para compreender que é importante, especialmente no coração do Império, opormo-nos a estas aventuras do Império para “libertar” povos desta ou daquela opressão – basta fazer uma análise racional da realidade.

Vimos o que aconteceu com a libertação do povo sírio da “opressão do regime do Assad”: um enorme retrocesso nos direitos e liberdades das mulheres e das minorias étnicas e religiosas, e da população no geral; milhares de mortos; limpezas étnicas; e um novo regime – liderado por um takfiri que foi o braço direito de Al-Baghdadi na liderança do ISIS – subserviente ao regime sionista e ao Império.

Aos anarquistas iluminados que nutrem um ódio de estimação pelo Irão e pela “ditadura do Assad”, perguntamos: quantos direitos e liberdades ganhou o povo sírio com a queda do regime? E, se o “regime do Ayatollah” caísse, em que é que acham que o povo iraniano sairia a ganhar?

Ao longo dos últimos 12 anos, fomos muitas vezes acusados de ser assadistas ou putinistas, como se fosse preciso apoiar estes regimes políticos ou achá-los perfeitos para desmontar a propaganda que tenta demonizar os inimigos do Império. Claro que estes ardentes defensores dos direitos humanos ficam calados que nem ratos quando se materializam as consequências da última aventura imperialista que apoiaram, sejam os mercados de escravos na Líbia ou as limpezas étnicas na Síria.

 

À organização da Feira

Eu – não só como jornalista, mas também como anarquista – não consigo encontrar nada mais importante para fazer do que contribuir para desconstruir a propaganda do Império e construir solidariedade concreta com o povo palestiniano e com a resistência na região, para travar o Holocausto dos nossos tempos. Se isso não cabe dentro do anarquismo, não entendo o que caberá.

A Guilhotina é um dos poucos projectos em Portugal que fez uma cobertura diária (com apenas breves interrupções) dos acontecimentos na Palestina e na região ao longo dos últimos 24 meses. O facto de a Feira Anarquista do Livro não ter interesse em ter uma banca nossa, mas acolher de braços abertos uma roda de conversa sobre poliamor, diz muito sobre o estado do anarquismo português.

O objectivo deste texto não é dar destaque à Feira nem à Guilhotina – pelo contrário, é centrar Gaza no debate político e tentar dar alguns breves elementos que possam servir, a anarquistas e a não-anarquistas, para nos libertarmos das grilhetas racistas e eurocêntricas que nos atrofiam o pensamento. 

Talvez o tom deste texto não seja o melhor, mas é o tom possível após dois anos de ver e ouvir diariamente jornalistas, médicos e equipas de resgate, mulheres e homens, crianças e idosos – em Gaza e na região –, para tentar fazer uma cobertura jornalística minimamente à altura do que o presente período histórico exige de nós.

Quem levar a mal, temos pena – provavelmente preocupa-se mais com o seu ego do que com o genocídio ou com construir esse “mundo onde caibam muitos mundos” de que nos falam os zapatistas.

Se há algo que Gaza nos ensina é que só se resistirmos juntos, apesar das nossas diferenças, à barbárie do Império capitalista ocidental é que teremos alguma hipótese de triunfar. A resistência palestiniana percebe-o bem. E nós?

Boa Feira Anarquista do Livro, companheiros, companheiras e companheiroas.

PS: E a todas e todos os que se sentirem tentados em balbuciar insultos tipo “reaccionários”, “esquerdomachos” e outros na mesma linha, este texto foi passado por quatro mulheres antes de seguir para publicação – umas anarquistas, outras não; uma da Guilhotina, outras de grupos com quem temos colaborado nos últimos tempos; todas comprometidas com a luta pela libertação da Palestina, do rio ao mar. E vocês, estão comprometidos com o quê, exactamente?

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