coord. Joana Brinca
“O reconhecimento da identidade de género integra em si uma importante conquista no campo dos direitos humanos, mas ao mesmo tempo coloca novos desafios que necessitam ser conhecidos e ultrapassados para que as pessoas e as sociedades colham os benefícios práticos da apologia da justiça social e especialmente da dignidade humana.”
Joana Vale Guerra, Uma Visão Interdisciplinar sobre Transexualidade no séc. XXI (ed. Húmus, 2022)
Existe um corpo crescente de literatura que documenta as formas de estigmatização, marginalização e exclusão de pessoas trans, de género diverso e não binárias devido à sua expressão e/ou identidade de género. A academia possui um papel importante nesse processo que é o da construção de conhecimento e desconstrução de normas e padrões impostos socialmente, numa relação de criação de pensamento crítico sobre todas as formas de preconceito e discriminação para a vivência em sociedades abertas a todas as vivências ou identidades. Este livro é um claro exemplo desse trabalho em torno de identidades trans e género diverso.
Dividido em seis ensaios principais, com contributos de autores de áreas disciplinares diferenciadas, desde a psicologia, antropologia, direito ao serviço social, este livro traz-nos temas como vários como corpo, género e sexualidade, preconceito e saúde mental, serviço social, numa ótica, claro está, direcionada às experiências de pessoas trans, não binárias e de género diverso em Portugal.
Com enfoque na realidade portuguesa, país que começara a debruçar-se sobre as reivindicações e direitos de pessoas trans apenas recentemente, mostrando desenvolver um conjunto de leis sobre identidade de género e autodeterminação na última década, esta obra coordenada por Joana Brinca, professora auxiliar da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, mostra como as expressões mais tradicionais de preconceito evoluíram de expressões mais flagrantes para expressões mais subtis e como o preconceito resulta do desconforto da crescente visibilidade LGBTIQ, percepcionada como ameaça aos valores e instituições tradicionalmente associados à heterossexualidade.
Quando olhamos para as identidades trans e para as formas de preconceito que estas pessoas são sujeitas, somos irremediavelmente remetidos para discursos patologizantes sobre a identidade e expressão de género destas pessoas. Em Portugal, até 2016 com a promulgação da lei de autodeterminação da identidade de género, a transexualidade estava fortemente remetida aos discursos médicos veiculando a ideia de doença e da impossibilidade de as pessoas trans desenvolverem as suas identidades de forma protegida e em segurança.
Porém, ainda que sem necessidade de um relatório médico para afirmar a sua identidade de género socialmente, o modelo médico continuando a focar-se na biologia e no binarismo de género, na hegemonia da relação entre sexo biológico e identidade de género, continua a mostrar criar formas de discriminação e desinformação quanto às identidades e experiências trans. Realidade que traz consigo repercussões múltiplas, desde aquelas relacionadas com a saúde mental e física de pessoas trans, como as dificuldades ao nível social e económico como é o acesso ao mercado de trabalho regulado, habitação, educação e cuidados de saúde especializados.
Percebemos que os discursos sobre género, sexo e sexualidade ainda são alvo de forte controvérsia, especialmente aquando legam narrativas de poder patriarcal em que transformam o corpo em objeto de conhecimento e vigilância, de fiscalização e disciplina como são aqueles que pretendem moldar os comportamentos de pessoas LGBTQIA+ através das forças legais e institucionais.
“De acordo com o LGBTQI Inclusive Education Índex (2017) Portugal dispõe de boas políticas e princípios de base neste âmbito, mas carece de implementação de medidas concretas de combate à discriminação em função da orientação sexual, identidade ou expressão de género e características sexuais. (…) A necessidade de assegurar a viabilidade de respostas possíveis para cada forma de viver a transexualidade.”
Joana Vale Guerra, Uma Visão Interdisciplinar sobre a Transexualidade no séc. XXI (ed. Húmus, 2022)
O livro mostra-nos que apesar de hoje a lei portuguesa reconhecer o direito à identidade às pessoas transexuais, a sua cidadania plena exige um trabalho continuado contra a discriminação de que são alvo e a garantia do acesso a cuidados de saúde. As pessoas trans continuam sujeitas a significativas formas de discriminação e violência em Portugal, em certa parte devido à inação e invisibilização que Estado português teve durante anos, sendo agora, mais do que nunca, adaptar as leis para que todas as pessoas sejam reconhecidas e incluídas no espetro das políticas públicas que acautela o exercício dos seus direitos e liberdades.
Este é um livro que embora com um pendor cientifico mostra ser de leitura acessível e clara, permitindo abrir o debate público para a transexualidade e para uma visão mais afirmativa e inclusiva das pessoas transexuais na sociedade portuguesa.
ISBN: 9789897558184 Editor: Húmus Páginas: 138