Neste dia 20 de novembro, assim como fizemos há um ano, marcamos juntos mais um Dia Internacional da Memória Trans. Reunimo-nos neste dia para recordar todas as pessoas que, por habitarem corpos trans, perderam suas vidas nas mãos da violência transfóbica. Reunimo-nos porque celebramos suas vidas e estamos em um luto interminável por suas perdas. Reunimo-nos não apenas porque é imperativo estarmos juntos na memória inesquecível de nossas companheiras, mas também porque a luta por nossas vidas e direitos é vital à nossa existência. É imperativo estarmos lado a lado para enfrentar um sistema que nos quer condenar à violência, à precariedade, à morte e ao esquecimento. Não aceitamos nem esquecemos. Neste dia em que nos unimos em luto, mostramos também nossa raiva diante da constante injustiça que recai sobre as pessoas trans. Estamos aqui para desafiar e resistir a um sistema que constantemente tenta nos subjugar.
No dia 20 de novembro, unimo-nos para colher os frutos da vida e da morte de todas as nossas companheiras que já não estão aqui conosco. Unimo-nos para que nos deem força para lutar por um mundo no qual nem mais uma pessoa trans em nenhum lugar seja injustiçada e violentada. Força para lutar umas pelas outras e por quem vier depois. Suas mortes não serão em vão.
É impossível estar aqui, neste local, a assinalar este dia, sem reconhecer a ironia em sua fachada. Sem sentir desconforto ao olhar para estas paredes, estes tetos, este chão e reviver a segregação e o binarismo que foram forçados sobre as crianças que aqui cresceram e receberam sua educação. Vejamos esta sala central, aparentemente ambígua, não como um espaço neutro, mas sim como um convite à reflexão. Que juntos possamos, mesmo que temporariamente, reapropriar este espaço como um local de resistência consciente. Vejamos este símbolo de um passado como um lembrete do que já foi conquistado, mas também como uma chamada para a ação contínua. Estamos aqui para reafirmar nosso compromisso em construir um futuro onde todas as crianças possam crescer e aprender em um ambiente que celebra a diversidade, que não as force a se encaixarem no binarismo cisheteronormativo. É aqui que tudo começa. Estar aqui hoje é um ato de resistência, uma afirmação de que a violência contra aqueles que desafiam as normas de gênero jamais será esquecida.
O Trans Murder Monitoring Update para 2023 indica que foram reportados 320 assassinatos de pessoas trans e de gênero diverso em todo o mundo desde a última vez que assinalamos este dia. Sabemos que este número de assassinatos registrados não representa de todo o número de vidas perdidas pela mão da violência transfóbica, uma vez que a maior parte dos assassinatos sofridos por pessoas trans não são reportados, e quando são, são descartados ou minimizados pelas forças policiais e sistemas legais. Sabemos que estes números não representam as pessoas trans que se veem encurraladas a cometer suicídio em resposta à sua ostracização, à sua não compreensão, à falta de apoio ou meios que aliviam a sua dor, à falta de comunidade, à constante marginalização, à constante criminalização da sua existência, à perda das suas redes de apoio e famílias e todas as outras condições que negam as nossas vidas. Que nos forçam a assemelhar-nos à cisnormatividade. Que nos “aceitam” mas só se nos assemelharmos à binariedade. Sabemos que estes números não reconhecem estas pessoas, e sabemos que muito menos representam os 49% de jovens trans que tentam terminar as suas próprias vidas, por não sentirem que têm um futuro, por serem negados acesso à sua transição, por serem bloqueados da sua autenticidade e felicidade.
Mesmo assim, os dados que apresentam pintam um retrato muito real da violência transfóbica e de quem é mais alvo dela. Destas 320 pessoas assassinadas, 94% das vítimas eram mulheres trans ou pessoas transfemininas. Quase metade das pessoas trans assassinadas cuja ocupação é conhecida tinham a ocupação de trabalhadora do sexo. Isso salta para três quartos (78%) na Europa. Pessoas trans afetadas pelo racismo representam 80% dos assassinatos relatados, um aumento de 15% em relação ao ano passado. 45% das pessoas trans foram assassinadas na Europa, cujos antecedentes migratórios são conhecidos como migrantes ou refugiados. Quase um terço ocorreu no Brasil. Em um quarto dos casos ocorreu na própria residência das vítimas.
Olhando para estes números, não podemos negar nem nunca esquecer as profundas interseções entre a brutalidade transfóbica e todas as formas de violência racista, machista e xenófoba. São discriminações e violências que, estando sempre ligadas, matam acima de tudo mulheres trans, pessoas trans-femininas, trabalhadoras do sexo, migrantes e racializadas. Por compreendermos que assim é, compreendemos também que a luta a fazer pela defesa de vidas trans terá sempre e necessariamente de ser a luta transfeminista, a luta antirracista, anticapitalista e antifascista, contra todas as formas de precariedade e repressão.
**Nas ruas, a insegurança à qual estamos expostos é alarmante, sendo a nossa vivência marcada por abuso verbal e físico e atentados à nossa vida no espaço público. Reconhecemos a violência crescente que tantas vezes sofremos nas mãos das forças policiais. A polícia não nos protege, protege um status quo que deixa para morrer todos os corpos dissidentes: racializados, não-documentados, femininos, não-binários e com diversidade funcional. Lutamos pela nossa segurança no espaço público. Lutamos para podermos sair de e chegar a casa todos os dias sem medo, e sem que nada nos aconteça. Mas para essa luta existir, temos de ter acesso a uma casa na qual podemos ter abrigo.
A vida não nos é apenas retirada em episódios de brutalidade transfóbica, é nos retirada pelas condições de vida indignas às quais a nossa comunidade é sistematicamente sujeita.**
O que nos mata é um problema crítico de insegurança económica. Insegurança por sermos tantas vezes expulsos de casa a uma idade precoce; Pela perda do nosso porto de abrigo; Pela perda das condições necessárias para podermos estudar; Pelo negar do nosso acesso ao trabalho e rendimento básico, à habitação e à saúde, à documentação. O que nos mata é ser-nos negadas as condições materiais necessárias para podermos viver, é a precariedade extrema à qual nos querem condenar. Celebrar o dia da Memória Trans é também rejeitar que decidam por nós a vida que vamos viver.
Por isto, lutamos contra um estado português que dia após dia ESCOLHE a manutenção das barreiras assassinas que coloca entre os nossos corpos e o acesso a bens e serviços básicos. Não há inocência. Enquanto a lógica da supremacia do lucro nos condenar à inflação, ao trabalho indigno e mal pago, às contas que sobem, à habitação completamente inacessível que nos põe no olho da rua, vidas trans estarão sempre em risco de não serem mais vidas. Enquanto não tivermos acesso a um serviço de saúde descentralizado, sem filas de espera desumanas e que não nos force a binariedade; enquanto o pleno direito à habitação, autodeterminação, à educação, a rendimento básico não existir; as comunidades mais marginalizadas da sociedade continuarão a ser as mais expostas à violência diária de um estado que nos deixa para morrer. Um estado que nega documentação a pessoas migrantes e mesmo a quem nasceu cá, impedindo o acesso a tudo o que é necessário à vida; Um estado que coloca pessoas transfemininas em prisões masculinas exponenciando ainda mais a crueldade do sistema prisional; Um estado que criminaliza as populações que marginaliza, e que mata dentro e fora dos muros dessa prisão, julgando-se impune pelos crimes que comete. Não esquecemos Danijoy, Daniel e Miguel, assassinados pelo Estado Português no Estabelecimento Prisional de Lisboa, não esquecemos Gisberta Salce Júnior, mulher trans, imigrante brasileira, trabalhadora do sexo, e portadora de VIH/SIDA, em situação de sem abrigo, assassinada por vários jovens, após recorrentes agressões, no Porto, em 2006. Não esquecemos Alcindo Monteiro, assassinado a 10 de junho de 1995, dia de Portugal, vítima de um crime de ódio racial, por um grupo de supremacistas brancos, não esquecemos Rose, jovem trans de 15 anos, que como tantas outras tirou a sua vida, vítima de bullying na escola e violência no seio familiar. Não esquecemos Angelita Correia, mulher trans brasileira encontrada morta no mar de Matosinhos em janeiro de 2021, cuja morte foi vergonhosamente (não) investigada pela polícia judiciária portuguesa, tendo sido o caso arquivado sem qualquer resposta. Não esquecemos quais são as estruturas que permitem e perpetuam estes crimes. Não esquecemos que a democracia e a justiça são só para alguns. Não nos deixamos usar como meio de pinkwashing para justificar qualquer ato de violência, preconceito ou genocídio. Lembramos que a causa palestiniana também é uma causa queer. A propaganda de pinkwashing do estado de Israel quis convencer-nos de que os nossos aliados são uma máquina sangrenta e genocida, e não o povo palestiniano sujeito a um regime de apartheid, violações sistemáticas de direitos humanos e propaganda falaciosa. O dia da memória trans existe para que não nos deixemos enganar. Aqui estamos para coletivamente lembrar quais as escolhas políticas que são tomadas todos os dias e ao nosso redor. Por agora a escolha continua a ser deixar-nos morrer.
Enquanto pessoas queer, uma multiplicidade e multidão precarizada, mas talentosa, inteligente, capaz, com sonhos e ambições, lutamos para não sermos reféns da lógica especulativa e da incerteza de uma casa, de um trabalho, de quando será a minha consulta. Exigimos segurança diária e efetiva e a proteção de todos os direitos basilares, para que as nossas vidas possam ser de facto nossas. Viva toda a nossa expressão, viva às nossas atrações e desejos, viva os nossos corpos dissidentes e ameaçadores, viva as hormonizadas e as não-hormonizadas, viva os nossos passados, presentes e futuros, viva as nossas vozes e narrativas, viva a solidariedade, viva o afeto, viva o amor seja entre quem seja. Viva a história da nossa luta, pela melhoria coletiva das nossas condições, viva a resistência trans. Continuaremos, todos os dias, a lutar por justiça e dignidade. Aí estará sempre o papel central da memória: como um esforço constante na construção da nossa história, pela decisão de não deixarmos as nossas companheiras cair nunca no esquecimento, para que nunca nos apaguem, neguem a nossa existência e as violências sobre ela cometidas. Lembramos para nunca esquecer porque e por quem lutamos. Neste dia nos juntamos. Saímos às ruas porque não esquecemos as vidas tiradas a tantas pessoas trans. Queremos marcar a sua presença através da nossa presença. Da presença de todos os nossos corpos – em luto, mas vivos, resilientes, desobedientes e unidos. Continuamos em perigo e os direitos por agarrar são todos. Seguimos em força pela defesa da vida trans.
Caldas em Marcha:
https://instagram.com/caldas.em.marcha
Deixe um comentário