publicado no Jornal Mapa
A política de do no harm é uma mentira que um relatório recente vem destruir definitivamente. Líbia, Tunísia, Marrocos, Egipto são cada vez mais as fronteiras da UE. Que paga para que os migrantes e refugiados morram longe.
Oficialmente, a relação da União Europeia com a Líbia, em termos de «gestão de fluxos fronteiriços», baseia-se no princípio do no harm («Não causar danos»), que significa tomar todas as precauções para garantir que as pessoas não serão afectadas negativamente por essas relações, mesmo que inadvertidamente.
Esse princípio, tão nobre, não passa do papel e foi recentemente confirmado como inexistente. Um relatório da Lighthouse Reports demonstra que o grupo armado líbio Tarek Bin Ziyad (TBZ) 1 efectuou expulsões forçadas de migrantes com apoio da Frontex e das autoridades maltesas, que partilharam as coordenadas dos barcos de refugiados para impedir a sua chegada a costas europeias. Apesar de a análise mostrar que havia opções mais seguras disponíveis em todos os casos de perigo, incluindo navios mercantes e navios de salvamento de ONG, Malta e a Frontex defenderam a sua cooperação com a TBZ, alegando que a partilha das coordenadas teve como objectivo «ajudar as pessoas em perigo».
Toda a União Europeia sabe já o que vem escrito no relatório, quando dá voz aos próprios migrantes: vários relatam maus tratos e tortura às mãos das milícias; alguns referem espancamentos e violência, disparos e mortes; há noticiais correntes de confisco de telemóveis e passaportes.
Entretanto, continuam os abusos contra as pessoas que se deslocam na Líbia. As autoridades líbias anunciaram, em 28 de novembro, os preparativos para a deportação de um total de 250 migrantes para o Chade e o Níger, no âmbito da luta contra as «redes criminosas de traficantes» nos dois países africanos. A linha directa de emergência operada pela associação Refugees in Libya recebe mais de 100 chamadas por dia durante a semana de embarcações em perigo e cerca de 400 aos fins-de-semana. Além disso, a Organização Internacional para as Migrações informou que a chamada Guarda Costeira da Líbia interceptou 105 migrantes entre 3 e 9 de dezembro. Até 18 de Dezembro de 2023, 15 383 migrantes, incluindo 556 crianças, foram interceptados e devolvidos à Líbia.
Por outro lado, as autoridades tunisinas interceptaram este ano cerca de 70.000 migrantes que tentavam atravessar o Mediterrâneo para Itália, mais do dobro de 2022. O elevado número de intercepções é o resultado directo do controverso memorando de entendimento entre o autoritário presidente tunisino, Kais Said, e os seus homólogos europeus, representados pela Team Europe, para travar as partidas do país norte-africano em troca de milhões de euros, num contexto de abusos e violência contínuos contra as pessoas em movimento. Em 27 de novembro, a organização Refugees in Libya publicou um vídeo que mostra os agentes fronteiriços tunisinos a disparar contra migrantes da África subsariana, cuja única opção para escapar à violência era saltar para o mar. Além disso, um artigo recente da Al Jazeera documentou os testemunhos de migrantes na Tunísia que relatam o aumento da violência por parte da polícia tunisina contra pessoas em movimento que dormem na rua perto de Sfax.
No meio de tudo isto, o diretor executivo da Frontex, Hans Leijtens, está de visita a Marrocos para «reforçar o diálogo e a cooperação com as autoridades de gestão das fronteiras do país». «Quero felicitar [as autoridades marroquinas] pelos resultados que estão a obter neste momento; um trabalho perfeito nas suas fronteiras», disse Leijtens, apesar do facto de este «parceiro estratégico» ter obstruído os esforços para concluir uma investigação credível sobre o massacre de Melilla, em Junho de 2022.
Ao mesmo tempo, a UE está a reforçar a cooperação com as autoridades egípcias lideradas pelo Presidente Abdelfattah al-Sisi, que tornou o país ainda mais autoritário do que no tempo de Hosni Mubarak. Mais uma vez, a UE e os seus Estados-Membros fecham os olhos a tudo em troca de cooperação em questões como a energia, a migração e a segurança. No final de Outubro, com a situação em Gaza a deteriorar-se, a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, sugeriu aumentar o apoio ao Cairo em função do número de migrantes, sugerindo um acordo que poderia ser algo comparável ao acordo UE-Tunísia. Margaritis Schinas, Vice-Presidente, afirmou que a necessidade de colaborar com o Egipto é «ainda mais premente». Como sempre, cada vez que se adivinha uma «crise de refugiados», a UE paga para que morram longe.
Notas:
- Um dos grupos de milícias mais perigosos do mundo, dirigido por Saddam Haftar, filho do senhor da guerra da Líbia Oriental Khalifa Haftar e acusado de assassinatos, tortura, detenção arbitrária e escravatura, com alegadas ligações ao Grupo Wagner da Rússia.
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