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Carta aberta dos Jornalistas Sem Papel

https://clubedejornalistas.sapo.pt/2024/03/08/carta-aberta-dos-jornalistas-sem-papel

Baixos salários e precariedade impedem-nos de ter uma vida digna. É tempo de exigir condições justas para fazermos jornalismo de qualidade. Juntamo-nos ao apelo da greve de jornalistas. Parem connosco.

8 de Março, 2024

Somos jornalistas sem papel. Sentimo-nos pouco representados e o que ganhamos não dá para pagar as contas. A precariedade rouba-nos o presente e o futuro. Jornalistas sem papel somos todos nós, um grupo informal de jornalistas que se insurge contra os baixos salários, a precariedade, os longos turnos, os burnouts e a pressão para o imediatismo. Está na hora de quebrar o silêncio.

Estamos no limite. Não aguentamos os baixos salários, a precariedade, as longas horas de trabalho, a pressão para o imediatismo, os constantes burnouts. O jornalismo em Portugal tem-se baseado numa política laboral indigna para manter o fluxo de notícias. Não temos perspetivas pessoais e profissionais. Ficámos calados durante demasiado tempo, mas chegou o momento de rompermos o silêncio.

A grande maioria de nós ganha miseravelmente. Cerca de um terço recebe entre 701 e 1000 euros líquidos, segundo o Inquérito Nacional às Condições de Vida e de Trabalho dos Jornalistas em Portugal, de 2023. A progressão salarial é uma miragem. Mas há mais: 15% dizem ser alvo de assédio moral; quase metade tem níveis elevados de esgotamento, com 38% a declararem ter problemas mentais decorrentes da profissão; e 48% sentem-se inseguros com a sua situação laboral. A precariedade é uma violência social e limita a nossa liberdade pessoal e profissional.

A conclusão é clara: o jornalismo é uma profissão marcada por sobrecarga laboral, conflitos éticos, degradação da qualidade do trabalho, dificuldade de conciliação entre a vida profissional e a familiar, salários baixos e precariedade. Dizem-nos que não há dinheiro, a palavra “crise” é usada como justificação constante e a situação piora de ano para ano. Ao mesmo tempo, exigem-nos um esforço cada vez maior: mais notícias produzidas em menos tempo e mais horas de trabalho sem remuneração digna.

Uma redação precária perde a capacidade de definir o seu critério editorial. Sem contratar mais profissionais, sai-se cada vez menos em reportagem, aprofunda-se e investiga-se pouco. A constante exigência de hiper produtividade desvirtua o jornalismo, tira o tempo para verificar factos, procurar novas fontes, desenvolver pensamento crítico. Produzimos pior jornalismo, mais repetitivo, pouco explicativo, imediatista, monotemático, sensacionalista. Produzimos um jornalismo que representa cada vez menos as diferentes realidades da sociedade. E todo o país perde com isso.

Não há democracia que sobreviva sustentada por precariedade, seja no jornalismo ou noutro setor. Não há democracia sem escrutínio dos poderes económicos e políticos, sem informação verificada, rigorosa e diversificada que ajude a tomar decisões informadas. O jornalismo responsável desempenha um papel fundamental no combate à informação falsa. No ano em que celebramos os 50 anos da democracia, o jornalismo depara-se com novas ameaças. Há merecidas críticas à sua perda de qualidade, mas, para que sejam realmente justas, é preciso olhar-se para dentro de todas as redações deste país, para as condições de trabalho dos jornalistas e para tudo o que suportam para continuarem a cumprir o sentido de missão que os trouxe à profissão. 

As novas gerações de jornalistas são obrigadas a sujeitar-se à precariedade e aos baixos salários para acederem à profissão e à carteira profissional. Sabendo que, para isso, precisam de vínculo laboral, há empresas que pagam só o salário mínimo nacional, só o subsídio de refeição ou, no extremo, nada. Com as redações desfalcadas, afastados numerosos jornalistas experientes com décadas de memória e de ofício, quem está a estagiar acaba por não receber a formação necessária. Há empresas que veem nos estágios a oportunidade de recrutar mão de obra barata e permanentemente disponível.

Mesmo os contratos do Instituto do Emprego e da Formação Profissional (IEFP) normalizaram a precariedade, ao funcionarem numa lógica de cadeira quente: depois de nove meses, quem estagia abandona a redação sem ter muitas vezes a carteira profissional, surgindo depois outra pessoa para ocupar o lugar deixado vago. Quem tem a sorte de ficar começa a receber bem menos do que 1000 euros brutos em muitas redações. E assim continua por muitos anos – basta olhar para o lado para ver jornalistas com 10, 15, 20 anos de carreira que pouco mais ganham e que há anos não recebem aumentos dignos. Há poucas perspetivas de progredir na carreira. A contratação sem respeito pelo Contrato Coletivo de Trabalho resulta na desproteção de trabalhadores e na desigualdade salarial vivida em muitas redações. É uma estratégia de dividir para reinar.

Vivemos num país com cada vez maiores desertos noticiosos: mais de metade dos nossos concelhos não tem ou está na iminência de não ter qualquer órgão de comunicação social. Além da escassez de informação local — um risco enorme para a nossa vida democrática —, tornou-se insustentável para a maioria de nós viver em Lisboa e no Porto, onde está a maior parte das grandes redações. Uma das consequências é a cada vez menor pluralidade de origens, percursos e conhecimentos entre os jornalistas. Os baixos salários, já de si incomportáveis, tornaram-se mais do que insuficientes para suster os crescentes custos de habitação, alimentação, transportes, saúde. Uma das poucas opções é aceitar cargos de chefia, que significam um aumento salarial que muitas vezes não compensa as novas responsabilidades. Ou que nem sequer correspondem a uma maior retribuição monetária, retomando o ciclo de instabilidade que vai corroendo direitos. 

Não esqueçamos jornalistas em freelancing, que representam um terço dos profissionais com carteira em Portugal e são tão esquecidos nos debates e lutas sindicais da classe. Avençados (forma encapotada de as empresas não darem um contrato) ou a trabalhar à peça, os freelancers são os mais precários do jornalismo. Têm de escrever artigos à dúzia por semana para pagarem as contas no fim do mês. Por um artigo de investigação que demora meses, há jornais a pagarem 225 euros brutos, dos quais cerca de 40% são para impostos. Na área da Cultura, onde o regime freelancing impera, são 50 euros brutos por um texto de 2000 caracteres, que dá trabalho a pesquisar, a pensar e a escrever. A qualidade sai prejudicada e todos nós perdemos.

Confrontados com a escolha entre viver com dignidade ou sobreviver para trabalhar, muitos de nós acabam por desistir logo nos primeiros anos de profissão. Em 2018, quase metade dos jornalistas estava extremamente insatisfeita com as condições de trabalho e mais de 60% já tinham ponderado abandonar o jornalismo, de acordo com um estudo do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Entre 2017 e 2023, a profissão perdeu 600 profissionais jovens e veteranos. Os baixos salários, a degradação da profissão, a precariedade contratual e o stress foram as principais razões apontadas. Há jornalistas com 20 ou 30 anos de experiência a receber entre 1200 a 1500 euros de salário líquido.

Nós, jornalistas sem papel, queremos conquistar a nossa autonomia e construir uma vida digna, mas esses objetivos não estão ao nosso alcance. É tempo de parar e exigir condições para fazermos o jornalismo de qualidade, profundo e plural que consideramos necessário numa sociedade democrática. Juntamo-nos ao apelo da greve geral de jornalistas. Parem connosco no dia 14 de março. Porque há um momento em que não dá mais. Esse momento chegou. Façamo-nos ouvir.