Ousámos desafiar a “crise do jornalismo” em plena pandemia e fundar um jornal de investigação assente num jornalismo diferente. O jornal termina esta quinta-feira por razões exclusivamente financeiras. A nossa permanente teimosia deparou-se com uma muralha, e há um momento em que o espírito de combate já não basta.
28 Março 2024
O Setenta e Quatro fica-se por aqui. Quase três anos depois do seu lançamento a 13 de julho de 2021, o Setenta e Quatro termina nesta quinta-feira por razões exclusivamente financeiras. Há vários meses que o projeto se confrontava com dificuldades financeiras e a nossa pequena redação fez o possível e o impossível para que o Setenta e Quatro continuasse a trilhar caminho. Mas a nossa permanente teimosia deparou-se com uma muralha, e há um momento em que o espírito de combate já não basta.
Sempre soubemos que o desfecho poderia ser este. Sabíamos o desafio que teríamos pela frente quando começámos a desenhar o Setenta e Quatro em agosto de 2020. Sabíamos quais as nossas linha e estratégia editoriais, o jornalismo que queríamos ou não fazer, os contributos que queríamos dar para fortalecer a democracia e os direitos sociais. Sabíamos quais os próximos passos a dar. Mas também sabíamos que o financiamento do jornalismo em Portugal, fosse público ou privado, é um deserto. O risco de falharmos era grande, mas avançámos na mesma.
Ousámos desafiar a “crise do jornalismo” em plena pandemia e fundar um jornal de investigação assente num jornalismo diferente: um que se posicionasse no campo progressista, frontalmente comprometido com a democracia, que desafiasse a extrema-direita e o discurso de ódio e todas as formas de discriminação. Conseguimos, mas deparámo-nos com a mesma muralha de sempre: a do financiamento.
Enfrentámo-la por quase três anos, garantindo sempre a qualidade editorial, mas não a conseguimos derrubar. Mantemos hoje a opinião que tínhamos quando começámos, a de que um projeto jornalístico destes é necessário para a saúde da democracia, mais ainda quando se celebram 50 anos do 25 de Abril e da democracia portuguesa com 50 deputados de extrema-direita no parlamento.
Hoje, anunciamos o fim de um projeto ao qual nos dedicámos de corpo e alma. Fazemo-lo com enorme tristeza, mas de cabeça erguida: temos plena noção do caminho que percorremos, dos contributos que demos com o nosso jornalismo e que cumprimos a missão a que nos propusemos desde o primeiro momento. Não ficámos em cima do muro. Tivéssemos nós mais recursos e mais teríamos feito. Tivéssemos nós mais recursos e mais iríamos fazer. Tantos eram os projectos e investigações na agenda.
Nos últimos anos, a pequena redação do Setenta e Quatro fez os possíveis e os impossíveis: dividiu-se em grandes investigações e em edições semanais, sempre com o esforço e dedicação inesgotáveis do seu designer, o Rafael Medeiros. Publicou nove investigações, em média uma a cada três meses, sobre temas de inegável interesse público (denunciámos as práticas de conversão de orientação sexual, revelámos a violência sexual em hospitais e consultórios privados, expusemos a infiltração de extrema-direita nas forças de segurança, escrutinámos um homicídio cometido por boneheads, contámos os negócios obscuros de Luís Filipe Vieira) e publicámos edições todas as semanas – dezenas de entrevistas, reportagens, artigos longos, ensaios e crónicas. O Setenta e Quatro contribuiu para um debate democrático mais aberto.
Não o fez, no entanto, sozinho: contou com o apoio mais que essencial de mais de duas centenas de ensaístas, dos jornalistas freelancers (Diogo Augusto, Tiago Carrasco, Cláudia Marques Santos, Marta Lança, entre outros) e dos cronistas residentes. Um muito obrigado a todos e todas e a cada um e uma. Muito obrigado aos Ladrões de Bicicletas, à República dos Pijamas, à revista Manifesto, à Ana Rita Governo, à Bárbara Carvalho, à Teresa Coutinho, ao Diogo Faro, ao Filipe Vargas, ao Guilherme Trindade e à Paula Cardoso. Muito obrigado.
O caminho trilhado até aqui seria impossível sem o apoio de quase duas mil pessoas que subscreveram o Setenta e Quatro e que não nos largaram a mão quando passámos por grandes dificuldades financeiras, contribuindo para os nossos crowdfundings. Sabemos o esforço com que o fizeram num país dominado por precariedade, baixos salários e grandes desigualdades sociais, quando o custo de vida não parava de subir. Poderiam ter simplesmente olhado para o lado. Afinal de contas, os nossos conteúdos eram gratuitos de qualquer das formas. Acreditamos que o fizeram por encararem o jornalismo como bem público essencial para a democracia e acreditarem na importância do jornalismo sem fins lucrativos quando a democracia está ameaçada por dentro. Muito, muito obrigado a quem nos apoiou e a quem nos leu.
O Setenta e Quatro fica-se por aqui, mas não os seus jornalistas. A nossa democracia enfrenta ameaças às quais pensava ter escapado. A história não se repete, mas existem continuidades históricas e a extrema-direita ganha terreno a cada eleição, Portugal não seria uma exceção na Europa. O jornalismo comprometido com a democracia e os direitos humanos, que nos norteou no Setenta e Quatro, é hoje ainda mais necessário. A nossa missão mantém-se.
O Setenta e Quatro fica-se por aqui, mas não tinha de ser assim. O nosso fim não é especial, é semelhante ao de tantas e tantas redações já desaparecidas por este país fora. E o problema é sempre o mesmo: o financiamento, não a qualidade editorial. E para isso contribuiu o facto de Portugal viver em completo contraciclo com a maioria dos Estados-membros da União Europeia: não tem qualquer política de financiamento público do jornalismo nem um setor forte de mecenato. É o deserto, e mais redações se confrontarão com o seu fim se nada fizermos enquanto sociedade.
Há tanto tempo que ouvimos falar da “crise do jornalismo” que a acabámos por naturalizar, como se não existissem alternativas. O modelo de negócio tradicional do jornalismo está morto e enterrado e todos nós o sabemos. Daí que não faltem propostas de políticas públicas de apoio financeiro de diferentes atores da sociedade civil para se inverter a tendência de haver cada vez maiores desertos noticiosos. O diagnóstico está mais do que feito, mas as ações tardam em chegar.
O poder político, que se entretém tecendo loas de amor ao jornalismo, salientando sempre a sua importância para a democracia, nada fez, e redações foram desaparecendo de ano para ano. A desinformação grassa na sociedade, alimentada pela fragilidade do jornalismo e promovida pelas redes sociais, e a extrema-direita saiu das margens da política para entrar em força nos órgãos de soberania. O jornalismo, esse bem público, foi relegado às lógicas totalizantes do mercado.
A intervenção do Estado na economia foi demonizada, exceto quando acontece em defesa dos interesses que dominam a nossa economia. O mercado continua a ser endeusado, mesmo com tantos exemplos de falhanço, como sendo a solução para tudo e todos. Mas o mercado transforma tudo em mercadoria, e cabe ao Estado impedi-lo. Porque precisamos cada vez mais de um jornalismo forte, plural e diverso. Um jornalismo dependente das forças de mercado para sobreviver não será um jornalismo capaz de escrutinar essas mesmas forças.
Está na hora de tirarmos a cabeça da areia, está na hora de debatermos finalmente o financiamento público do jornalismo, um financiamento que seja direto, estrutural, transparente e independente dos poderes político e económico. Está na hora de quebrarmos tabus e de tudo fazermos para salvar o jornalismo, não temos tempo a perder. Porque uma sociedade sem jornalismo não é democrática. Sabemo-lo já de trás para a frente, passemos finalmente à ação.
https://setentaequatro.pt/noticia/o-setenta-e-quatro-fica-se-por-aqui