Em 2020, Cláudia Simões foi brutalmente violentada pela polícia em frente à sua filha então com 8 anos, numa paragem de autocarro na Amadora. Chegados a 2024, o sistema de justiça português considera-a culpada dos seus próprios ferimentos e daqueles que, para se defender, infligiu ao agente Carlos Canha, sendo condenada a oito meses de pena suspensa e o agente ilibado. Este é mais um exemplo paradigmático do racismo institucional na polícia e tribunais portugueses.
O caso chegou à opinião pública através de vídeos publicados nas redes sociais que mostravam Carlos Canha em cima de Cláudia Simões, já com vários ferimentos, a fazer-lhe uma chave de pescoço, mas a violência haveria de continuar nas horas seguintes. Em tribunal, a juíza Catarina Pires frisou que “ninguém fez mal a Cláudia Simões” e que “o choro da sua filha é à mãe que se deve”. Enfatizou ainda que não havia ali motivações racistas e que esperava que a decisão do Tribunal servisse para “pacificar” estas perceções.
A violência sobre Cláudia Simões e a sua filha gerou um forte debate público sobre o racismo e a xenofobia nas forças de segurança e no sistema judicial, contribuindo para evidenciar a injustiça vivida perante agressões e mortes de pessoas negras, ciganas, imigrantes e pobres às mãos da polícia. Disso são exemplo, casos recentes com o da Esquadra de Alfragide (2015) e do Bairro da Jamaica (2019), da morte de Ihor Humenyuk no centro de detenção do SEF no aeroporto de Lisboa (2020), a violência sobre migrantes, no posto da GNR de Odemira (2021), a morte de Danijoy Pontes e de Daniel Rodrigues, no Estabelecimento Prisional de Lisboa (2021), e de Miguel Cesteiro, na cadeia de Alcoentre (2022), a condenação do ativista antirracista Mamadou Ba (2023).
Em nenhum destes trágicos acontecimentos, tal como no de Cláudia Simões, o racismo e a xenofobia foram tidos em conta, como, aliás, em Portugal, nunca o são. A taxa de arquivamento de queixas apresentadas por racismo e xenofobia ronda os 80% e só 7,5% levam a condenação (2006-2016). Sabemos que não é por acaso que as pessoas racializadas e imigrantes são mais encarceradas e mortas pela polícia, consequência do cerco que lhes é feito através das chamadas “Zonas Urbanas Sensíveis” (ZUS), do artigo 250.º do Código do Processo Penal e do aparato legal que sustenta a Europa Fortaleza.
Nos dias seguintes ao espancamento de Cláudia Simões, o então diretor nacional da PSP, Magina da Silva, afirmou tratar-se apenas de “um polícia a cumprir as suas obrigações e as normas que estão em vigor na PSP”. O Sindicato Unificado da Polícia de Segurança Pública, cuja liderança tem ligações à extrema-direita, já noticiadas em vários órgãos de comunicação social, insinuava nas suas redes sociais que Cláudia Simões poderia ter transmitido doenças ao agente Carlos Canha quando o mordeu para se defender. Após a sentença condenatória de Cláudia Simões, o líder do partido de extrema-direita haveria de continuar a capitalizar o caso, acicatando o ódio racial e xenófobo na polícia.
É preciso lembrar que, após agredir Cláudia Simões, o mesmo polícia havia de espancar, dentro da esquadra, dois homens negros – Quintino Gomes e Ricardo Botelho – que, entre a multidão, haviam presenciado o que se passara na paragem de autocarro. Por essas agressões, Carlos Canha seria condenado a três anos de pena suspensa e ao pagamento de indemnização por ofensa à integridade física qualificada e sequestro. Os outros dois agentes que o acompanhavam – João Gouveia e Fernando Rodrigues – nada viram, nada fizeram e, portanto, não foram condenados.
Porque teria ele agredido aqueles homens, mas não Cláudia Simões, afinal de contas, a pessoa central naquele caso? Em declarações que nos envergonham a todos, o Tribunal diz que o agente “descomprimiu” os nervos acumulados antes, durante a detenção de Cláudia Simões, naqueles dois homens. Durante as audiências no Tribunal os magistrados – do Ministério Público ao coletivo de juízes – acusaram Cláudia Simões de ser uma pessoa “arrogante”, “exagerada”, “impetuosa”, “não colaborante”, “exaltada”, “revoltada”, “possante”. A humilhação foi tal que Cláudia Simões teve de mostrar várias vezes a sua cabeça para demonstrar que o agente lhe havia arrancado o cabelo, mesmo existindo documentos médicos a comprová-lo.
No fecho da leitura do acórdão, o Tribunal considerou ainda relevante dirigir-se ao movimento antirracista e à opinião pública em geral, como já havia feito um dos advogados dos agentes, dizendo que a comoção era derivada de “falsas assunções” construídas num quadro de “idiossincrasias”, “mundividências” e “preconceitos”, portanto, a falsa tese do racismo reverso, contra polícias.
Sabemos que a polícia e os Tribunais estão institucionalmente desenhados para exercer o monopólio da violência sobre pessoas racializadas, imigrantes e pobres. A nossa luta não se move pela esperança de que o Estado reconheça o racismo que o constitui; mas pela dignidade de nos mantermos de pé e audíveis sobre as injustiças e hipocrisias de um sistema que se diz justo. Move-nos a necessidade de continuar a luta antirracista dos nossos antepassados, do nosso presente e futuro.
Apelamos a todas as pessoas, coletivos e demais forças da sociedade portuguesa e comunidade internacional que se juntem a nós na exigência de revogação da sentença e de reparação da violência infligida pela polícia e pelo sistema judicial a Cláudia Simões. Neste momento, em que ela se prepara para recorrer da decisão, a solidariedade de todes é indispensável, com Cláudia Simões e com todas as vítimas de violência policial e do estado.
Apelamos a TODES a participar na Manifestação JUSTIÇA POR CLÁUDIA SIMÕES E TODAS AS VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA POLICIAL, no dia 14 de Setembro, a partir das 16 horas. O percurso começará no Estabelecimento Prisional de Lisboa, marcando os 3 anos das mortes ainda sem explicação de Danijoy Pontes e de Daniel Rodrigues, e prosseguirá até ao Martim Moniz.
Coletivos signatários:
Afrolink
Afrolis
Associação Cavaleiros de São Brás
Associação Sendas e Pontes
Baque do Tejo
Batoto Yetu Portugal
Buala
Casa do Brasil de Lisboa
Coletivo Afrontosas
Consciência Negra
Djass – Associação de Afrodescendentes
Femafro – Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afrodescendentes em Portugal
Grupo EducAR
GTO LX
INMUNE – Instituto da Mulher Negra em Portugal
Khapaz – Associação Cultural
Mulheres Negras Escurecidas
Muxima Bio BV
Nêga Filmes – Associação Cultural
Núcleo de Imigrantes das Belas Artes da Universidade do Porto
Peles Negras, Máscaras Negras
FAIASCA-P – Federação das Assoc. de Imigrantes e Amigos do Setor de Calequisse em Portugal
Plataforma Geni
Opus
Renovar a Mouraria
SaMaNe – Saúde das Mães Negras e Racializadas em Portugal
Solidariedade Imigrante-Associação para a defesa dos direitos dos imigrantes
SOS Racismo
Teatro GRIOT
The Blacker The Berry Project
UNA – União Negra das Artes
Vida Justa
Vozes de Dentro
Deixe um comentário