Conversa com uma militante trans não binária, actualmente em Rojava e no seio de um partido marxista-leninista, sobre a visibilidade das pessoas queer e a contradição que existe dentro do movimento curdo.
Poucos são os que abordam a questão queer na luta pela autodeterminação dos curdos. Mas apesar desse voto de silêncio, a questão continua lá. O movimento de solidariedade com o Curdistão, a nível internacional, é construído por muitas pessoas queer. Em particular, no que toca à promoção da jineoloji, a ciência das mulheres, muito do seu apoio internacional vem de mulheres queer e trans, cuja militância as aproxima da solidariedade curda. Mas, no que toca à questão queer, o movimento curdo mostra-se consistentemente «hesitante», se não «retrógrado». Dentro das regiões libertadas do Curdistão, onde a emancipação das mulheres é prioritária, as pessoas queer mantêm-se tão reprimidas como sempre.
A justificação «revolucionária» dada para esta contradição é a de que há assuntos mais urgentes para se tratar, numa situação de ataques constantes e de embargos económicos, e de que esta é uma questão muito delicada, devido ao conservadorismo da população. Uma justificação fraca e idêntica à que foi dada, durante décadas, para não se trabalhar na questão da libertação da mulher, uma atitude hoje identificada como tendo sido extremamente contra-produtiva e injusta. Tal como a emancipação da mulher ajudou a libertar um grande potencial criativo e revolucionário dentro do Curdistão, o mesmo aconteceria se a libertação queer fosse trabalhada com tal vigor.
Z., chamemos-lhe assim por não poder revelar o seu nome, é militante da União das Mulheres Comunistas do Partido Comunista Turco – Marxista-Leninista (TKP-ML), fundado em 1994 na fusão de anteriores organizações comunistas de tendência albanesa, ou seja, de cariz altamente conservador na defesa do estalinismo e contra qualquer reformismo comunista. Razões de sobra para nos surpreender que aqui encontremos um interlocutor com quem discutir a questão queer em Rojava.
«Se és queer, tens de mudar»
- apresenta-se: «nasci no Curdistão Turco, no seio de uma família alevi de classe trabalhadora». O alevismo é uma tradição islâmica heterodoxa que existe entre curdos e turcos na Anatólia. Na cultura alevi, as mulheres têm geralmente um maior papel na prática religiosa e na liderança familiar, embora continuem a sofrer, tradicionalmente, da forte violência patriarcal que é comum a toda a sociedade. Nesse contexto, Z. recorda o processo de descoberta da sua identidade. «Nas minhas primeiras experiências com a sexualidade, compreendi que era “diferente”, mas estava a tentar convencer-me de que tinha de ser “normal”. Na minha família, os papéis do trabalho doméstico e do trabalho externo são muito mais democráticos do que na maior parte da Turquia e do Curdistão. Mas continuam a existir papéis masculinos e femininos bem definidos. A minha autoaceitação e a minha politização foram, na realidade, paralelas. Embora o local onde comecei a luta organizada fosse bastante LGBTI+fóbico, as ideias revolucionárias, a luta pela liberdade e a aprendizagem sobre o marxismo ajudaram-me a aceitar a minha identidade sexual. Quando olho para os meus amigos, que se assumiram na mesma altura que eu mas que vieram de círculos que não eram políticos ou organizados, vejo que as nossas posições sobre a luta LGBTI+ divergem muito. Apesar de, nos primeiros anos, termos tido as nossas primeiras experiências juntes, enquanto eu escolhi a luta social, eles escolheram áreas mais individuais e mais restritas. Eu, por outro lado, partindo de um homem gay, tornei-me uma pessoa trans não binária que se foi libertando à medida que se politizava e se ia conhecendo cada vez mais»Assumir a sua identidade trouxe riscos. Z. fala-nos de Ahmet Yıldız, estudante curdo de Física em Istambul, com 26 anos, assassinado pelo seu pai a 15 de julho de 2008, naquele que é conhecido como o primeiro «crime de honra» contra um homem gay na Turquia. «Ter-me assumido perante a minha família foi um pouco contra a minha vontade. O Ahmet Yıldız tinha sido assassinado pelo seu pai. Estávamos a ouvir muitas notícias semelhantes. A minha família também teve problemas, porque eu era politicamente ative. Por isso, embora uma parte de mim quisesse assumir-se, a outra parte tinha medo, e o medo prevaleceu. Mesmo que soubessem ou sentissem que eu era queer desde pequene, este assunto não era falado abertamente. Era implicitamente enfatizado que eu não devia ser assim, que os que eram assim morriam de doença ou eram mortos por alguém, que eram pessoas não fiáveis, mas nada era dito diretamente sobre o facto de eu ser queer. Diziam-me, “se és queer, tens de mudar”, de uma forma subtil. A minha saída do armário não foi consciente e voluntária. Descobriram-no por acaso. Os primeiros anos foram muito dolorosos. Andámos de um lado para o outro entre psicólogos e psiquiatras. Eu tive sorte. Encontrei médicos que não eram maus. Os médicos disseram à minha mãe a verdade e não o que ela queria ouvir. “A sua criança é normal. Ela não está doente. Você tem de mudar de atitude”. Quando olho para o meu passado, quero dizer isto às pessoas que menosprezam a luta LGBTI+: as lutas reformistas não nos vão trazer liberdade, mas irão facilitar a vida de crianças queer como eu. Não podemos ignorar este facto. Estes médicos, mais jovens e mais conscientes, foram o resultado do ativismo LGBTI+ em organizações como a CETAD», uma associação fundada em 1998 por psiquiatras e psicólogos para o desenvolvimento da saúde sexual.
«A minha família demorou algum tempo a mudar. No final, embora a minha mãe não aprovasse a minha entrada na luta armada, quando conheceu os meus camaradas disse: “estão a lutar por pessoas oprimidas como eles. Estou orgulhosa da minha criança”. O meu pai teve poucas conversas comigo durante estes 10 anos. Não se envolveu diretamente nos meus problemas, neste ou em qualquer outro assunto, exceto para me apoiar economicamente. O fardo estava nos ombros da minha mãe e o facto de ela ter feito essa afirmação fez com que fosse mais fácil para o meu pai aceitar a situação. Passados 10 anos, foi assim que a minha família aceitou a minha identidade sexual».
Lubunyas do Curdistão
«O Curdistão turco, tal como o resto do mundo, está cheio de diversidade sexual. Mas esta diversidade sexual é oprimida pela dominação patriarcal heterossexual. É o que acontece mesmo entre revolucionários. Trata-se, portanto, de uma geografia onde tudo é vivido em segredo. Por um lado, o secretismo garantia a nossa segurança, mas por outro também nos empurrava para contextos perigosos. E tudo era muito mais difícil no triângulo Estado-Polícia-Máfia em que vivíamos. Claro que a vida das pessoas LGBTI+ no resto da Turquia também é difícil, mas o Curdistão é uma geografia muito mais desafiante neste sentido. Especialmente enquanto eu crescia, as coisas eram diferentes. Atualmente, graças à luta pela liberdade das pessoas LGBTI+, algumas coisas foram superadas. Especialmente graças aos Lubunyas [termo turco para pessoas queer, hoje usado pela comunidade LGBTI+] do Curdistão que, apesar de tudo, desafiam tanto o Estado fascista turco como os revolucionários que não aceitam as pessoas LGBTI+, dizendo: “o Curdistão existe, as pessoas LGBTI+ existem!”. Sempre estive em ambientes políticos. Especialmente entre as pessoas LGBTI+ curdas, existe uma grande solidariedade. De facto, a espinha dorsal do movimento LGBTI+ na Turquia é composta por pessoas de movimentos socialistas, comunistas ou anarquistas, tal como em muitas partes do mundo. Isto significa, naturalmente, um número muito reduzido de Lubunya. A maioria das pessoas LGBTI+ não é assim tão política. A maior parte delas nunca se assume. Mas o facto de não se assumirem não significa que não existam».
«Numa cidade do Curdistão, por exemplo, havia mulheres trans que nós conhecíamos. Nunca vinham aos nossos eventos políticos, mas vinham às nossas festas em casa. Viviam em aldeias diferentes. À noite, uma delas, que tinha carro, ia a outras aldeias e fazia sinal com uma lanterna, e a mulher trans que recebia esse sinal levantava-se calmamente da cama e ia ter ao carro. Assim, juntavam-se algures e divertiam-se e, antes do amanhecer, voltavam novamente para as suas casas. Isto explicava porque é que elas nunca vinham às nossas festas antes das 10 horas, nem iam às festas a seguir».
Do ativismo LGBTI+ à «vida revolucionária»
«Nasci no seio de uma família democrática e progressista. Embora o sistema educativo turco nos tenha educado como inimigos dos revolucionários, eu não estava assim tão longe deles. Mas, devido a este sistema educativo, continuei sob a influência intensa do kemalismo». Esta é a ideologia oficial do Estado Turco, que deve o seu nome a Mustafa Kemal Ataturk, primeiro Presidente da Turquia. Um nacionalismo acérrimo em combate com os curdos desde o início da República Turca.
«O meu percurso do kemalismo a ideias mais revolucionárias é, na verdade, uma história trans. Entrei na luta organizada durante os meus anos de secundário. Comecei a participar em protestos, a distribuir jornais e panfletos sobre as reivindicações democráticas da juventude estudantil, a luta da classe trabalhadora, as reivindicações democráticas dos curdos e dos alevitas. Era uma organização reformista e LGBTI+fóbica, mas só posso afirmar isso hoje. Na altura, era a única e verdadeira organização revolucionária para mim. Passado algum tempo, fui sorrateiramente expulso deste grupo por causa das minhas opiniões diferentes e sob o pretexto da minha identidade sexual. Neste processo, fiz amigos muito valiosos. Nunca me deixaram sozinhe durante o processo em que revelei a minha identidade sexual à minha família, e também depois».
- participará no ativismo LGBTI+ e trans+, mas «os limites do reformismo eram demasiado estreitos. Assim, comecei a dar um passo de uma vida política ao nível do ativismo para me tornar um sujeite na vida revolucionária». O contacto com o TKP-ML surgiu ao acompanhar outro «crime de honra». A 2 de julho de 2012, Roşin Çiçek, jovem gay de 17 anos, «foi brutalmente assassinado pelo seu pai e tios em Amed. Como pessoas LGBTI+ do Curdistão, seguimos este caso. Havia muito poucas pessoas connosco. Uma grande parte eram jovens militantes de Amed», cidade histórica no conflito curdo com a Turquia e assumida por muitos curdos como a capital de facto do Curdistão.
Em Amed, os militantes do TKP-ML «eram muito ignorantes em relação às questões LGBTI+, mas também estavam muito interessados em aprender». Z. toma conhecimento de Ibrahim Kaypakkaya, «o líder imortal dos militantes», o fundador do TKP-ML, executado na prisão em 1973, com 24 anos. «Simpatizei facilmente com o camarada Ibrahim por causa da sua resistência. Também vi sinceridade nos partisans de Amed, uma abordagem honesta. Essa simpatia transformou-se em interesse. Sempre que lá ia por causa do caso de Roşin Çiçek, encontrava-me com mulheres militantes, ficava em casa delas. Nas conversas que tive com elas, aprendi muito sobre o camarada İbrahim. Tudo isto se passava em grande segredo. Na Turquia, as casas dos militantes estão sob vigilância. No Curdistão turco, isso é ainda mais rigoroso. Mas, mesmo assim, continuámos a ter discussões calorosas. Também comecei a visitar militantes durante as minhas visitas a Istambul e Ancara por causa do ativismo LGBTI+.»
Um batalhão Queer posa para a fotografia
«Quando a revolução começou, eu não estava organizade no meu partido. Estava a tentar fazer ativismo LGBTI+ no Curdistão. O Movimento Nacional de Libertação do Curdistão ainda hoje se encontra numa posição muito atrasada em termos do movimento LGBTI+, e era ainda mais atrasado quando esta revolução começou, à exceção de algumas deputadas curdas progressistas. Apesar do meu interesse pela revolução e pelos revolucionários, nunca pude fazer parte deste movimento por esta razão, mas isso não significa que não apoiasse a revolução em Rojava. A partir de 2011, participei em todas as manifestações de apoio a Rojava. Estive presente nos funerais dos guerrilheiros. Havia pessoas da minha cidade e da minha escola que se juntaram à guerrilha, foram para Rojava e foram martirizadas. Eu queria muito juntar-me à guerrilha, mas também tinha dezenas de amigos de Amed e Dersim que se juntaram à guerrilha e foram mandados de volta por serem homossexuais ou trans… Apesar da atitude LGBTI+fóbica do Movimento de Libertação Curdo, achei que era necessário apoiar um desenvolvimento progressivo criado por este movimento».
«Apesar daqueles que declaravam que a era das revoluções tinha terminado, estava em curso uma revolução no Médio Oriente, apesar das suas deficiências e do seu carácter ignorante em certos aspectos. Estava a acontecer, apesar dos ataques de uma organização terrorista como o DAESH, um assassino de pessoas LGBTI+ e de mulheres, e apesar do embargo». Quando Ivana Hoffman, uma internacionalista afro-alemã queer na guerra contra o DAESH perdeu a vida em Rojava, em março de 2015, «um amigo meu do MLKP [Partido Comunista Marxista-Leninista] disse, “não nos deixaram dizer que ela era homossexual”, e chorou. O Movimento de Libertação Curdo estava a discutir a questão LGBTI+ de uma forma em Istambul e de outra em Rojava. De facto, a essência das discussões era a mesma, mas um discurso abertamente LGBTI+fóbico em Istambul era contra os seus interesses políticos. Em Rojava, esse discurso existia. Fiquei muito ofendide. Estávamos a dar mártires LGBTI+. Apesar de termos sido martirizados contra o Estado fascista turco e os seus gangues, não nos deixavam expressar a nossa identidade sexual. Por esta razão, no mesmo ano, entoámos slogans como «Ivana Hoffman é a nossa honra! Ivana Hoffman vive no nosso amor» em muitos locais, especialmente nas Marchas do Orgulho».
O episódio de uma fotografia tirada em 2017 em Raqqa por um autoproclamado batalhão queer, que rapidamente se tornou famosa (e infame), exemplificou a dificuldade de uma relação queer na imagem da revolução. «Embora algumas pessoas tenham interpretado negativamente o facto de esta fotografia ter sido tirada e publicada, tratou-se obviamente de uma ação de flash mob. Naturalmente, incomodou algumas pessoas. E as pessoas que fizeram a ação foram vistas como as culpadas. Este é o resultado da lacuna que existe na luta contra o heterossexismo. Só pode ser uma fonte de honra para aqueles que defendem a liberdade LGBTI+ que os combatentes queer que alcançaram a vitória em Raqqa, a capital dos bandos do ISIS que assassinaram brutalmente milhares de pessoas LGBTI+ na Síria e em Orlando [EUA], tirem e partilhem uma foto destas. Mas estamos a falar de uma visão que critica os camaradas que tiraram esta fotografia em vez de criticar a exibição de uma atitude LGBTI+fóbica, escondendo-se atrás de desculpas como as tribos, a religião e a estrutura patriarcal». A fotografia teve um efeito em Z. – «tenho de fazer parte desta revolução apesar de tudo, tenho de desistir desta vida que consiste apenas em mim próprio».Um passo atrás, um salto em frente?
- passa assim à condição de militante curde em Rojava. «Foi uma decisão difícil, vir para Rojava. Sabia que estava a deixar tudo para trás, a minha família, os meus amigos, os amantes que tive ao longo dos anos… Mas também sabia que tinha de participar neste processo revolucionário. Não se tratava apenas de Rojava. Não poderia construir a liberdade sozinhe. Ou estava dentro do círculo, ou fora. Quanto tempo poderia me manter no meio? Seria moldade de acordo com as políticas do nosso partido ou preferiria o meu conforto e bem-estar pessoal? O bem-estar pessoal é possível? Porque é que eu deveria ter ficado no sistema enquanto pessoas LGBTI+ morriam em Rojava, enquanto dezenas de pessoas LGBTI+ de Rojava tentavam migrar de barco todos os dias e, ainda por cima, enquanto o TIKKO [o braço armado do TKP-ML] lutava aqui? Vim sabendo das dificuldades. Tive dificuldades, continuo a ter dificuldades. Mas o meu entusiasmo em 2011 deu lugar a uma consciência revolucionária. Talvez não conseguisse fazê-lo só com entusiasmo, mas com a consciência que recebi da União das Mulheres Comunistas e do TKP-ML, esse entusiasmo transformou-se em vontade. Talvez seja esta a resposta para o facto de eu ter aderido muito mais tarde e não em 2011: uma consciência organizada também me permitiu ultrapassar os meus medos e ansiedades».
- é acolhido na União de Mulheres Comunistas, «uma organização de mulheres de todas as orientações sexuais e identidades de género e pessoas queer, organizada sob a direção do TKP-ML e com autonomia organizativa. Embora o nosso partido tenha lutado durante mais de 50 anos, foi só muito mais tarde que as mulheres e as pessoas queer conseguiram chegar a ter uma organização tão autónoma. Isto baseia-se certamente no facto de a luta contra o patriarcado e o heterossexismo não ser apenas externa, mas também interna». Z. observa que no partido «permanecem diferentes posições e uma delas é o entendimento que, de uma forma rudimentar, reconhece as pessoas LGBTI+ como identidades doentes ou degeneradas. Hoje estamos a lutar para mandar esta forma de pensar para o caixote do lixo da História». Defendendo «uma posição que vê a luta contra o heterossexismo como parte da luta de classes», refere que o TKP-ML «não nega a luta por reformas, que luta pela ampliação dos direitos democráticos, mas subordina a luta por direitos à luta pelo poder». E reafirmando a subordinação ao poder do «caminho iluminado da ciência do MLM [“maoísmo leninismo marxismo”]» que caracteriza a proposta política desse partido, um das partes da galáxia do Movimento de Libertação do Curdistão.«Após a minha participação direta na revolução, também experimentei mudanças intelectuais. Fiz uma transformação, construí-me a mim próprie, mas tive de renunciar a muitas coisas no meu caminho até aqui. O meu cabelo, a minha roupa, a minha maquilhagem, as pessoas que amo muito, o meu estilo de vida… Senti o peso disso por muito tempo, mas a certa altura percebi que ser queer não é apenas uma performance física. Quando aprendi a interpretar o queer de uma perspetiva MLM [“maoísta leninista marxista”], percebi que não me devia limitar fisicamente. Não podemos mudar este sistema apenas construindo os nossos próprios corpos, as nossas próprias vidas, numa performance queer. Podemos aumentar a consciencialização. Mas não se pode mudar um sistema que tem as suas origens nas relações de produção através da consciencialização. Neste sentido, penso que algumas mudanças que fisicamente parecem um passo atrás são, na verdade, um passo atrás para dar um salto maior. Porque graças à determinação da minha organização sobre esta questão, tive a oportunidade de discutir as questões LGBTI+ e o heterossexismo com outras organizações revolucionárias e militantes locais aqui. Estas discussões também contribuem para mudanças a longo prazo. É claro que as nossas discussões nem sempre encontram respostas progressistas. Mas continuamos a colocar na ordem do dia uma questão não falada, apesar de todos os riscos. Porque conhecemos as raízes de classe do heterossexismo e do patriarcado, e levamos a cabo a nossa luta com esta consciência».
Sobre a sua própria sexualidade, Z. afirma-a «condicionada pelo funcionamento organizacional». «Tendo em conta que somos discriminades, criminalizades e sujeites a violência quando representamos a nossa sexualidade, penso que esta questão não é uma questão trivial. Fala-se da felicidade dos “indivíduos” que vivem a sua sexualidade de uma forma saudável e não violenta. No entanto, a sexualidade nunca é encarada a nível social. O sistema reduz a sexualidade ao indivíduo, como faz com tudo o resto. De facto, é impossível falar de uma sexualidade saudável em geral, quando apenas uma pequena parte da sociedade está suficientemente sensibilizada para esta questão. A luta em que estou envolvide, em que participo, é de facto a luta pela construção de uma sociedade que seja mais saudável, que pense nos seus parceiros, que não aja apenas em função das suas próprias necessidades e que possa ter uma sexualidade saudável. Dentro da guerra revolucionária, é claro que há discussões com avanços e recuos sobre essa questão. No entanto, organizar a sexualidade através de intervenções externas ou de cima para baixo terá consequências pouco saudáveis. Por esta razão, só através de discussões organizadas e de baixo para cima é que lutamos contra os danos do patriarcado e do heterossexismo, incluindo na sexualidade.» Z. fala-nos de «debates especiais entre as pessoas queer locais sobre o conhecimento de si próprias e dos seus direitos, e sobre o aprofundamento da luta. No entanto, estes debates são muito limitados e tentamos organizá-los de forma semi-clandestina.»
Em suma, «esta é uma questão complicada que levará tempo. Especialmente se tivermos em conta a forma como a sexualidade é tratada no Médio Oriente. No âmbito desta luta, a minha sexualidade pessoal é condicionada pelo funcionamento organizacional. Isto é difícil de compreender para aqueles que dão prioridade ao indivíduo em detrimento da sociedade. Mas se ser militante revolucionárie nesta vida significa sacrificar muitas coisas, também significa sacrificar a vida sexual quando necessário. Então é uma questão de prioridades: as minhas necessidades individuais ou as exigências da luta?»
Que futuro (queer)?
Sobre a vida das pessoas queer nas zonas do Curdistão, para lá das militâncias, «sabemos que as pessoas queer criam espaços clandestinos onde podem respirar e isto acontece em todos os períodos da história e em todas as geografias». Porém, diz-nos Z., «na nossa posição e no quadro das leis e práticas actuais, é quase impossível comunicar com esse público».
Vive-se no segredo e no risco. «Existem condições diferentes nas quatro partes do Curdistão. É claro que estas condições não são independentes das políticas de anexação e ocupação. O Curdistão turco, em especial, é muito diferente devido à influência tanto do capitalismo de consumo, como do movimento LGBTI+. No Curdistão iraniano, as práticas são diferentes para as pessoas trans que querem fazer a transição e para quem não quer fazer a transição, a quem são aplicados diferentes níveis de tortura. Há apenas um ou dois anos, ativistas LGBTI+ foram detidos e torturados no Curdistão iraquiano e as filmagens foram publicadas».
«Em Rojava, a constituição provisional não inclui qualquer menção à orientação sexual e à identidade de género. Por vezes, são tomadas decisões mais moderadas, de acordo com a iniciativa do juiz. O fator de haver um inimigo tem de estar sempre na nossa agenda. Mas, como sabemos muito bem, na experiência palestiniana, o fator “inimigo” é frequentemente utilizado como uma máscara para a LGBTI+fobia. Além disso, o poder contra o qual estamos a lutar não é um poder como o Estado de Israel, onde a democracia burguesa se desenvolveu ao ponto de poder implementar políticas de Pinkwashing. O Daesh, outros grupos filiados ao Exército Sírio Livre, o Hashd al-Shaabi [o Hezbollah na Síria] ou o Estado Turco e o regime Sírio pensam mais ou menos a mesma coisa em relação às pessoas LGBTI+. Apenas as práticas são ligeiramente diferentes».
Para Z., ainda que recorde as pessoas LGBTI+ que saíram à rua na Síria durante a primavera árabe, «não é possível falar de um ambiente de liberdade para as pessoas LGBTI+ antes e depois da revolução. Mas os ganhos da Revolução de Rojava para as mulheres existem. Em certa medida, a libertação das mulheres e a mudança revolucionária tiveram um impacto nas vidas de, pelo menos, mulheres não heterossexuais».
«Se esta revolução não sobreviver, se houver um grande retrocesso, os direitos que foram conquistados até agora desaparecerão. Isto significa que o processo de desenvolvimento será interrompido. Para isso, temos de fazer todo o tipo de sacrifícios que construam a revolução». Por outro lado, «para preparar o caminho para o progresso na vida das pessoas queer que vivem aqui, é importante organizar as pessoas queer de Rojava que vivem no estrangeiro. Elas conhecem melhor a região e as suas condições do que alguém que não é de Rojava. Apoiar esta luta significa produzir políticas LGBTI+ mais corajosas e destemidas nas nossas áreas. Por isso, é necessário desenvolver um estilo que intervenha no problema de forma clara e revolucionária, em vez de um estilo pouco transparente, que serpenteia por caminhos sinuosos e que gira em torno do problema. Ao mesmo tempo, não devemos cair numa intervenção de exterior, de cima, sem compreender e conhecer as condições da região. Desde que consigamos fazer estas duas coisas em conjunto, asseguraremos também que as massas LGBTI+ de Rojava se juntem. Não sacrificaremos a revolução de Rojava ao inimigo».
Texto: PLATAFORMA DE SOLIDARIEDADE COM OS POVOS DO CURDISTÃO/ TKP-ML KKB
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Imagens: PLATAFORMA DE SOLIDARIEDADE COM OS POVOS DO CURDISTÃO/ TKP-ML KKB
Artigo publicado no JornalMapa, edição #40, Janeiro|Março 2024.
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