Em virtude dos acontecimentos recentes que envolveram ataques violentos a comunidades de migrantes na cidade do Porto, sentimos ser imperativo esclarecer alguns pontos.
Comecemos por contextualizar o sucedido.
A cidade do Porto não é propriamente uma metrópole multicultural à laia de Lisboa, essa urbe diversa e imperial. O Porto é, desde que nos conhecemos, uma cidade operária e burguesa, de senhores e trabalhadores, de madames e sopeiras. Uma cidade estrategicamente dividida e compartimentada pela burguesia. Da Foz do Douro ao Pego Negro, da Areosa à Ribeira, toda a gente sabia onde estava o quê e quem. Onde o desdém do rico pelo pobre é retribuído exactamente na mesma moeda, e em igual medida, no escárnio do pobre em relação ao rico.
Não pretendemos fazer uma idealização de um passado glorioso da cidade do Porto, onde cada um sabia e estaria contente com a sua posição na estratificação social da cidade. Pelo contrário, achamos que foi a resistência a essa divisão estanque que fez, da cidade do Porto, a cidade onde muitos se reveem e da qual reivindicam uma história que é também a nossa.
Largos anos passaram desde o início do processo da dita gentrificação. Plano brilhante, e maquiavélico, que começou a sua marcha nos idos dos anos 2000, quando se anunciou, orgulhosamente, que a nossa cidade seria a capital europeia da cultura, no ano seguinte. Nessa altura, dizem os académicos e os fazedores de opinião, o Porto metia medo. Era tanta a pobreza, a miséria e a consequente bandidagem, que não se podia andar na rua depois do sol se pôr.
As ruas desertas, as casas decrépitas e abandonadas, o ambiente lúgubre e pesado, foram a consequência de décadas de abandono da cidade e da sua população, maioritariamente pobre e pouco instruída. Muitos encontraram nos bairros de S. João de Deus, do Aleixo, da Pasteleira e do Lagarteiro, entre outros, o sossego e a paz que, à violência da pobreza, o consumo de drogas como a heroína é capaz de proporcionar.
Excepção feita a uma juventude alternativa e boémia que invadia o Luso e a Ribeira aos fins de semana. Atraídos por festa, bares e pela tolerância das autoridades ao consumo de drogas e álcool na rua, essas massas de jovens alternativos, punks, skins, gunas e queques, fizeram, alegre e inconscientemente, parte do processo de gentrificação da cidade. Foi assim que se abriu caminho à entrada de grandes investidores que viam uma mina de ouro nos bares e nas casas das zonas mais apreciadas por este público.
Recordamos bem a hostilidade dos «locais» que, por se sentirem importunados por estes jovens invasores, os brindavam com baldes de lixívia e sacos de água e mijo que atiravam das suas janelas; passando pelos habituais roubos e sessões de pancadaria entre «nativos do bairro» e «nativos boémios». Este momento fez, em certa medida, parte do processo de expulsão de quase todos os habitantes arrendatários da zona histórica do Porto (processo histórico também relacionado com a explosão da construção na periferia e as renovações do centro histórico aquando da candidatura a Património da Humanidade, assim como da própria transformação económica da cidade) para, numa fase posterior, surgirem os grandes investidores hoteleiros, os passeios de barcos e os bares chiques que conhecemos hoje. Os que viveram a sua juventude no início do milénio lembrar-se-ão bem.
Nessa altura, era tão escassa a diversidade populacional que havia ainda quem apontasse com o dedo quando via passar alguém com outra cor de pele. Não propriamente para enaltecer um preconceito, mas, ao revés, pela novidade que esse evento representava.
Posto isto, dizer que o Porto é racista faz tanto sentido como afirmar o mesmo de todo o Portugal (mais uma oferenda da esquerda identitária à extrema-direita), onde existem obviamente episódios de racismo, mas onde – e ao contrário do que afirmam certas mentes inteligentes, que acham que Lisboa é o centro do mundo e que de tudo fazem para não falar em classes sociais – o racismo não é a estrutura dominante das relações quotidianas, na maior parte do país.
De todo o modo, interrogamo-nos sobre a partir de que prisma é que se pode dizer que um país ou uma cidade são racistas. Será pelas suas pessoas?! Pela sua cultura?! Pela sua constituição?! Pela sua estrutura de Estado?!
Qualquer um destes prismas, ou até mesmo todos juntos, parecem-nos fracos para definir o que é uma cidade ou, até mesmo, um país. Um país pelo qual, diga-se de passagem, não nutrimos grande simpatia, sendo ele racista, ou não.
No entanto, é verdade que há, no Porto, traços identitários de bairrismo e localismo exacerbado. Existe um certo fechamento sobre si próprio que, dadas certas condições que se agudizam de dia para dia, é possível de ser mobilizado por um discurso autoritário baseado no medo ao outro e ao estrangeiro. Mesmo se achamos que as suas gentes não são particularmente racistas, pelo menos não mais do que as de qualquer outra cidade. Consideramos haver, no entanto, qualquer coisa em estado dormente que poderá ser facilmente apropriado, e explorado, pela extrema-direita, sobretudo quando se insiste em tratar como privilegiadas largas franjas das classes populares locais, ou pior ainda, apelidá-las de racistas como fez, automaticamente, muita gente «bem intencionada».
Constatar certos aspectos culturais e admitir esse tipo de potencialidade não nos leva ao exagero, imbecil, de tratar a cidade ou, por outras palavras, os seus habitantes como racistas.
Assim sendo, sentimos que há uma necessidade de esclarecer, não o sucedido na madrugada do passado 3 de Maio, aquando do ataque a uma residência onde viviam cerca de 12 migrantes porque, de uma maneira mais ou menos deturpada, como é apanágio dos meios de comunicação de massa, e já do conhecimento público, mas falar do que poderá ter levado a isso, referindo certos pormenores que, aparentemente, não interessam assim tanto ser explorados.
É do conhecimento geral de quem se habituou a deambular pela zona do centro do Porto, que esta tem vindo a ser habitada por pessoas das mais variadas origens. Não falamos de estudantes de países Erasmus, nem de migrantes de países de Leste. Esses, começaram a chegar pelo ano 2001 e, na psique coletiva da cidade, não deram muita chatice. No imaginário popular, os Erasmus eram maioritariamente jovens estudantes riquinhos e tranquilos. Os de Leste, que eram pobres, eram uns bêbedos e só armavam confusão entre eles.
Como consequência da aleatoriedade da globalização, e da sua economia circular, onde pessoas migrantes vêm ocupar espaços deixados vagos por locais que foram ser migrantes noutros países, a cidade assiste à chegada de gentes de outras latitudes em busca de uma vida melhor.
Pouco letrado nos temas académicos da diversidade e do racialismo, tão gratos a uma esquerda bem pensante, o portuense comum tenta compreender o fenómeno e, como de costume, busca a reflexão e as referências geográficas no léxico futebolístico: brasileiro é Jardel, argelino é Madjer, e o resto é Taremis. Curto, grosso e ignorante, e sim, até com laivos xenófobos.
Toda a gente sabe que “os moços” só se estão a fazer à vida. Trabalham nas obras, na agricultura, nas lojas de conveniência, de familiares ou amigos, dormem aos 15 num quarto. Enfim, o mesmo que alguns de nós fazemos em França, ou em qualquer outro país mais rico aqui por perto, quando a vida nos obriga a emigrar.
Entre colonos abastados e migrantes pobres, em 20 anos o Porto sofre uma mutação gigante, enquanto urbe. Torna-se uma cidade cotada internacionalmente, atraindo assim o interesse de corporações e gangues internacionais. De grupos organizados de roubo e tráfico, aos gangues de investidores, esta situação tem trazido graves problemas aos últimos habitantes que resistem do passado.
Ataques à população são desferidos constantemente. Roubos inegáveis, por força da miséria, por grupos cujos membros, neste caso particular, são de origem magrebina (deste facto concreto é óbvio que só imbecis podem defender que roubam devido à sua condição de migrantes, porque também nos lembramos dos roubos de outros tempos), assim como despejos, também eles inegáveis, de ruas inteiras por gangues legais de investidores israelitas, norte-americanos, indianos ou chineses, bem como de portugueses endinheirados.
Serve toda esta introdução para sublinhar que qualquer análise ou tomada de posição em relação ao sucedido e aos seus efeitos deverá ter origem numa análise da organização das cidades na fase do capitalismo europeu pós-industrial, onde a cidade é um meio de produção de valor em si mesma, e das condições materiais e contradições que esse processo gera, e não em reações pavlovianas baseadas em a priori ideológicos completamente desfasados da realidade concreta, neste caso, da cidade do Porto.
Acontece que um destes gangues começou a assaltar transeuntes, diariamente e de forma violenta, na zona do Campo 24 de Agosto. Como se isso não bastasse, inadvertidamente assaltaram com violência várias pessoas: uma idosa levou uma facada numa perna, uma mulher grávida foi assaltada de faca e atirada ao chão para lhe roubarem o telefone.
Em poucos dias surgiu um grupo com o intuito de se reunirem para «limpar o Bonfim» que contou com várias pessoas. É nesse grupo que entram os motivados racistas, onde um deles estaria ligado ao grupo 1143. Foi nessa brecha que a extrema-direita entrou. Num grupo que incluía brancos, tripeiros, ciganos, negros, cafusos e pessoal do subúrbio… (um bom exemplo para fazer reflectir os defensores do Poder Popular).
O que aconteceu nessa noite, como todos os vizinhos sabem, não foi motivado por ódio racial, mas sim por um ajuste de contas entre gangues locais e estrangeiros. A casa onde estavam estes imigrantes foi atacada porque, aparentemente, o sinal de um telefone roubado vinha lá de dentro, o que não justifica um acto injusto, mas explica bem as motivações dos agressores. Ajustes de contas entre vizinhos pobres sempre foram, infelizmente, típicos nesta cidade. Quem habita bairros sociais desde tenra idade, (ao contrário de muitos daqueles que histericamente bradaram aos céus por mais um episódio de racismo ou se regozijaram pelo sucedido porque lhes serve à sua agenda política de mobilização através do rancor) habituou-se a assistir a actos de linchamento entre os seus habitantes. Às vezes por justiça, outras por injustiça. Esta cidade, aparentemente domesticada, esconde um barril de pólvora de pobreza e violência, algo que as belas fachadas renovadas se esforçam por tapar e os mercados time-out mascarar com sobremesas gourmet.
Nem 24 horas passadas, assiste-se a um claro aproveitamento político deste acto. Desde os que, do lado de uma certa esquerda, ao crucificar estes violentos agressores, esperam conseguir a mobilização de opinião necessária para o aumento eleitoral dos seus quatro por cento; até à direita xenófoba que, aproveitando-se do mediatismo gerado, tenta (re)criar uns bravos heróis nacionalistas em luta contra o invasor. Todos tentando mobilizar e polarizar a opinião geral, todos com o mesmo fim. Tudo sob o manto protector de uma comunicação social sensacionalista e pouco dada à meticulosidade e amplificado pela indignação, fácil e imediata, proporcionada pelas redes sociais. Um verdadeiro «Triângulo das Bermudas» onde qualquer tentativa de análise do sucedido desaparece nos escombros da reação pavloviana, do oportunismo e do sound bite mediático.
Há aqui um problema de fundo, já observado noutros sítios do globo – uma política de espelhos. A esquerda identitária, pós-moderna e raci(ali)sta, e a extrema-direita identitária, conservadora e racista, alimentam-se de tudo o que o seu oposto faz, visando assim a criação de blocos de apoio tendo por base esse grande factor de mobilização «revolucionária» chamada indignação. Para cada «Ai!» indignado da esquerda há um indignado, e diametralmente oposto, «Ui!» da direita, e vice-versa. E assim se vão construindo rebanhos de ovelhas cuja «única e, aparentemente, insignificante» semelhança entre si são as suas condições materiais de sobrevivência e a sua posição na base da pirâmide social. Algo completamente acessório nas brilhantes mentes dos politiqueiros do costume.
Para a extrema-direita trauliteira, a mobilização das classes populares locais faz-se através do «Quanto mais burgesso melhor!», desumanizando-as como bárbaros sem capacidade de reflexão e usando-as como peões que a levarão ao poder. Do outro lado do espelho, assiste-se a que essas mesmas classes populares só servem se forem alguém a quem a esquerda erudita possa mandar lavar as mãos antes de ir para a mesa, ao que estes respondem exactamente com o resto da estrofe da famosa canção-manifesto de José Mário Branco.
No caso do proletariado migrante, o processo de desumanização é mais ou menos semelhante. Entre os que à esquerda vêm uma categoria, por consequência não-humana, porque só tem virtudes e incapacitada à prática do mal, e os que à direita veem a mesma pessoa como alguém sub-humano que só tem apetências para o lavor criminal. Encaixotada num limbo ontológico, a pessoa migrante existe somente para ser usada na mobilização de projectos eleitoralistas fundados na piedade ou no rancor.
Os efeitos perversos do «arrastão mediático» foram logo denotados na madrugada seguinte aos actos e continuam presentes, até hoje, no discurso de neuro-marketing constante dos telejornais. Fanáticos identitários de esquerda, agarrados ao telejornal e às versões de fontes policiais, convocaram manifestações e mobilizações um dia após os acontecimentos, sem nada perguntarem aos vizinhos da rua, e sem tentar minimamente compreender o que se tinha passado! Os fanáticos de direita populista fizeram o mesmo… tentando assim escalar tensões entre pobres locais e pobres migrantes. Como seria de esperar, o Estado, os investidores turísticos, os patrões, a câmara municipal e a polícia, passaram pelas gotas da chuva e continuam de mãos livres para exercerem os seus próprios planos de limpeza da cidade.
O problema de tudo isto é que, no fundo, esta triste situação serve a todos – excepto a quem foi agredido e a quem agrediu. Aos vários pastores dos dois blocos de ovelhas indignadas, às autoridades locais que já vieram pedir reforço policial (como se já não houvesse suficientes membros dessas milícias de mercenários do Estado nas nossas vidas!), e até ao Governo de Lisboa, que veio fazer pose de grande indignado antirracista. É caso para também nós dizermos: “Ao ponto a que isto chegou!”.
Parece-nos que os vários actores deste regime democrático do Capital que vive da demagogia, da manipulação e da autoridade, são os únicos a tirar benefícios da desgraça deste acontecimento. Para eles, ao final do dia, tudo está bem quando acaba bem.
Desde que o centro da cidade se tornou este parque temático «very typical», a tensão ganhou matéria e visibilidade. Sabemos que uma história trágica só se repete como farsa. No entanto, parece que estamos outra vez nos anos 80, um salário mínimo não chega para alugar uma casa no centro do Porto, a cidade está inundada de drogas pesadas e uma potencial guerra mundial não parece fazer diferença nem a investidores, nem a turistas.
Perante isto, atira-se, uma vez mais, a culpa aos mais vulneráveis, aos migrantes, aos negros e aos pobres que seguem na última linha, preferindo ignorar que os «estrangeiros» e «nacionais» que ocupam e descaracterizam a cidade são as «multi» e as «nacionais» do imobiliário que compram quarteirões da cidade para fazer hotéis; e os patrões «nacionais» e «estrangeiros» que, independentemente da cor de pele, fazem de nós empregados de balcão com o salário mínimo e nos mandam morar para fora da cidade.
Quem destrói o tecido urbano e social são os senhorios, os empresários, os investidores, os proprietários, «nacionais» e «estrangeiros», que detêm a posse do território. São eles que despejam os seus inquilinos, com linchamentos legais, quando lhes acenam com dinheiro.
Quem politicamente lavra o terreno para que toda esta corja molde e transforme a cidade, é o presidente da câmara, o Estado e os seus lacaios, onde se incluem a extrema-direita fascista e a esquerda burguesa e identitária.
Porque podem. Enquanto os pobres, «nacionais» e «estrangeiros», continuarem a acreditar em vendedores de banha da cobra.
Porto, 20 de maio 2024
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