Editorial do #42 do Jornal Mapa (jul-set 2024)
Para quem acompanha o Jornal MAPA, pode parecer estranho o súbito e aparente consenso sobre «as portas não podem continuar escancaradas», «a imigração está descontrolada», «imigração sim, mas assim não» e outras expressões que a visibilidade das pessoas migrantes nas ruas de Lisboa trouxe para a ordem do dia. E «estranho» é apenas uma figura de estilo, uma vez que, na realidade, não existe qualquer vaga de pessoas especialmente orientada para Portugal. O que existe é uma enorme e lusa bolsa de exploração, por um lado, e, por outro, uma crescente bolha de deserdados do mundo disponÃveis para serem explorados.
As pessoas vêm porque há trabalho. E acabam tesas, aos montes em alojamentos para poucas, em horários e rotinas de demência, nos empregos que mais ninguém quer. Apenas porque, deste lado, a única coisa que há para oferecer é uma mão estendida para receber contribuições e impostos. E a «integração» de que se fala passa por mil coisas, mas não passa pela denúncia da forma como estas pessoas são tratadas logo à partida.
No rescaldo dum incêndio numa dessas casas sobrelotadas, em Lisboa, Moedas e Montenegro (na altura ainda não primeiro-ministro) apressaram-se a dizer que era preciso filtrar os fluxos migratórios, de forma a que só viesse quem é realmente preciso, como se as vÃtimas do fogo não tivessem os seus trabalhos, não transportassem bens ou pessoas, não servissem à s mesas, não fossem, numa palavra, precisos. E, acima de tudo, como se as «nossas» necessidades fossem superiores ao seu («deles») direito à vida.
Toda a gente parece concordar. Certa esquerda grita «Ai a segurança social», a Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) afirma que os partidos que não querem imigração pretendem que o paÃs vá à falência, até a extrema-direita concede que, sem imigrantes, Portugal é inviável. Muitas diferenças de análise, claro, muitas divergências quanto à forma e ao conteúdo, bem entendido, mas uma clara semelhança na forma de olhar para a questão: «nós» precisamos «deles». A partir deste consenso, é fácil inverter o silogismo e concluir que, realmente, só devem vir aqueles de quem precisamos. Seja para a agricultura, para as obras, para uma vida uberizada, para a restauração, para qualquer outro campo onde a exploração se manifeste de forma mais brutal, ou para a sustentabilidade da segurança social, o olhar utilitário é quem mais ordena.
A extrema-direita, claro, rejubila. A mais ninguém interessa tanto esta ideia do imigrante útil e bom. Em primeiro lugar, para ser tido como excepção e em contraponto com o imigrante inútil e mau que é fácil fazer percepcionar como maioritário. Mas sobretudo para tornar senso comum a ideia do «outro» e a sua desumanização. A forma titubeante como a esquerda institucional, quando questionada, se furta a falar em abertura de fronteiras, a sua insistência na serventia dos imigrantes para Portugal, são gasolina para a fogueira da direita radical.
Na prática, a partir duma mentira – a da Europa de fronteiras abertas –, os novos fascistas conseguem dominar a agenda mediática – que, no caso português, foi também eleitoral – e vêem as suas reivindicações reconhecidas em letra de lei. Num ápice, num momento de rara eficiência estatal, o governo aprova e o presidente promulga. Direita e extrema-direita degladiam-se pela paternidade da ideia, lutam para ver qual dos balões partidários se enche e qual se esvazia com estas medidas. O restante espectro polÃtico fica bloqueado, perdido numa discussão de pormenores técnicos, quase embrutecido ao compreender que se deixou arrastar para uma discussão que não devia ser a sua.
Pormenores técnicos, sim. Importantes também. Deve-se, como é lógico, denunciar que a caducidade do mecanismo da «manifestação de interesse» prevista no decreto governamental levará a um maior grau de clandestinidade entre a população imigrante. Que quem sairá a ganhar serão, como sempre, as redes de tráfico de pessoas e as da sua exploração, ao que se poderá acrescentar o mais que provável florescimento de um mercado negro de colarinho branco para a obtenção de contratos de trabalho forjados. E que, no fundo, se penaliza a pobreza e a vulnerabilidade e se privilegia quem pode e sabe tratar do processo ainda no paÃs de origem, através dos consulados. Mas a questão fundamental já ficou para trás. A noção de humanidade já se perdeu. O «eles» e o «nós», essa coincidência biológica, é já uma barreira inultrapassável. E já parece demasiado adolescente questionar se pode alguém deixar outro à morte apenas porque não está disposto a prescindir do seu tupperware.
Discussão diferente é a que a Disgraça ou o Relâmpago trazem para o terreno de jogo, digamos assim. A Cozinha Migrante dos Anjos, em Lisboa, tem possibilitado que as pessoas que estão acampadas nos Anjos possam cozinhar e algumas delas são desafiadas (e têm aceite o desafio) para irem treinar e jogar com o clube que pugna pelo desporto popular. Exemplos de solidariedade mais do que integração e de autonomia mais do que caridade, a lembrar a importância do apoio mútuo entre humanos, independentemente da sua aparente utilidade, e o carácter fundamental da existência de colectivos e movimentos sociais fortes e despegados das exigências de «credibilidade» dos projectos de poder.