Carta Aberta: Não serei eu uma criança? Racismo na Infância em Portugal

por Movimento Negro em Portugal

No dia 28 de setembro de 2023, no recinto do Festival MIL, em Lisboa, experienciamos um ato de violência contra duas crianças, de 5 e 8 anos, um ato ao qual o racismo não é alheio. As meninas, as únicas crianças negras no evento, estavam a brincar na esplanada do recinto, onde várias pessoas as conheciam, pois, as mães são artistas audiovisuais conhecidas da equipa de produção e o pai de uma das crianças era um dos palestrantes convidados. Sentiam-se, portanto, num espaço seguro para que as crianças brincassem e corressem, entre as mesas da referida esplanada. A menina mais nova, juntamente com uma testemunha que trabalha no restaurante, alertou as mães para o facto de haver um homem a correr atrás da menina de 8 anos, tendo as acusado de ter roubado um cartão bancário que estava na sua carteira, dentro de uma mochila.

Naquele momento, a mãe e o pai da menina mais velha saíram em busca da filha e não a encontrando na zona da esplanada, avançaram para um dos edifícios do evento. Numa das salas estava a sua filha a chorar e a gritar, o homem que a havia perseguido e mais 3 ou 4 pessoas. Para além de as ter acusado e perseguido, esse homem terá agarrado a menina mais velha pelo braço. Os pais questionaram o agressor sobre o motivo pelo qual ele, um homem adulto, não procurou os familiares ou algum responsável do festival, e decidiram chamar a polícia. Naquele compasso de espera, o agressor terá procurado justificar-se dizendo, num racismo primário, que pensava que se tratava de crianças de rua, crianças ciganas, que ali estariam a roubar.

Cerca de 40 pessoas disponibilizaram-se a prestar depoimento enquanto testemunhas à polícia que, entretanto, chegou. A produção do evento posicionou-se solidarizando-se de imediato com as famílias e mais tarde através de um comunicado nas suas redes sociais. Sabemos que isso não é comum, pelo que só podemos esperar que outras organizações se sintam inspiradas a não abafar situações semelhantes que ocorram nas suas instituições.

Queremos que a justiça seja feita, que as crianças e famílias tenham acesso à assistência necessária à reparação deste trauma. Mas queremos também chegar a outras crianças que, pela sua origem étnico-racial – negra, cigana e outras –, são alvo de criminalização, vivem sob suspeita, alvos de violência psicológica e física racista nas escolas, parques infantis, nos transportes, estabelecimentos de comércio e, até mesmo, no seu bairro, sobretudo, quando este está classificado como Zona Urbana Sensível (ZUS).

Teria o agressor o mesmo ímpeto para as criminalizar se as crianças fossem brancas? Atrever-se-ia a passar do “pensamento aos atos”, indo da suspeição à agressão? Sentir-se-ia ele à vontade para violentar duas menores brancas num espaço público, num à-vontade respaldado pela expectativa de conivência de uma sociedade onde o racismo é generalizado? Estas situações, que nada têm de excecional, adoecem as nossas crianças, mas principalmente a sociedade portuguesa como um todo. Exigimos que o Estado português, designadamente, o sistema de justiça, reconheça a motivação racial desta agressão. Exigimos que, de uma vez por todas, abandone um entendimento legal “minimalista” sobre o que se entende por racismo. Exigimos que rompa com o padrão de negação do racismo que tanto prejudica a vida das nossas crianças e jovens e a vida democrática deste país.

publicada no Afro Link


Comunicado do Festival MIL

No final do segundo dia de convenção ocorreu um ato racista.

Um delegado internacional agarrou e interpelou com violência uma criança negra de oito anos, filha de outro delegado, que brincava num espaço supostamente seguro. Alegou que a criança teria aberto e mexido na sua mala e evidenciou que essa sua convicção partia de preconceito racial.

Nenhuma criança pode ser interpelada por um adulto e tratada com violência. É mais grave ainda quando existe motivação racial. Condenamos e repudiamos o ato a que essa criança foi lamentavelmente exposta.

Os procedimentos legais possíveis estão em curso. As autoridades policiais foram chamadas e o MIL assume desde já a sua responsabilidade de apoiar os familiares neste acontecimento.

O MIL não tolera qualquer forma de discriminação. Ampliamos, em toda a programação e estrutura de produção, a diversidade, inclusão, democratização e igualdade. Mas sabemos que entre a vontade, o discurso, a teoria e a prática ainda existem muitas barreiras e desafios a ultrapassar.

Sabemos também que casos como este não são isolados, mas sim sistémicos e estruturais. Temos um posicionamento político claro: mais do que falar sobre isto, temos de agir. Contamos convosco nas denúncias e nos debates.

Festival MIL

Imagem de destaque: @inescondeco durante o Festival MIL

Ler também:

Omissões mediáticas num caso de racismo na infância, Cristina Roldão https://www.publico.pt/2023/10/12/opiniao/opiniao/omissoes-mediaticas-caso-racismo-infancia-festival-mil-2066425

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