Publica-se este texto com uns certos anos para dar a conhecer a quem não o pôde ter entre as mãos, de que existe um mundo para além do queixume social, para além da mais comovedora demanda de concessões à liberdade, para além das frases feitas da ideologia, da política, da democracia, do victimismo social.
Nesse mundo além, está a necessária acção contra o velho mundo – fora da virtual, da fatídica, da passiva, da democrática e da ritual que nos impõe as organizações, de luta, comunistas, libertárias, identitárias – com recurso ao Confronto Mortal Contra o Existente, Seus Defensores e Seus Falsos Críticos.
Lê e difunde.
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Podemos traduzi-lo “Em duelo mortal com o existente, seus defensores e seus falsos críticos”, não sem fazer certas correções semânticas que podem ser de utilidade para entender este titulo tão interessante como de difícil tradução. A expressão ” ai ferri corti com…” é usada pra caracterizar como um ponto de não retorno, de ruptura iminente e violenta de uma relação com algo/alguém. “Ferri corti” é utilizado para falar de armas brancas (poderia ser “adagas” ou “punhais”) que constituíam o último estágio de um típico duelo mortal do século passado, a luta com armas curtas, que se desenvolvia corpo a corpo e onde tinha especial importância a destreza e rapidez dos combatentes, que lutavam para defender uma certa forma de honra. Todos estes núcleos significativos formam parte da constelação semântica desta bela expressão.
– I –
Cada um pode acabar contentando-se na escravidão daquilo que não conhece – e, negando a turba de palavras vazias, travar um duelo corpo a corpo com a vida [ir ai ferri corti com a vida]
C.Michelstaedter
A vida não é mais que uma busca de algo ao que aferrar-se (apegar-se). Alguém se levanta pela manhã para reencontrar-se, um par de horas mais tarde, de novo na cama, tristes pêndulos oscilando entre o vazio de desejos e o cansaço. O tempo passa e nos governa com um ferrão que se vai tornando cada vez menos incômodo. As obrigações sociais são um fardo que não parece dobrar nossas costas porque o levamos conosco para onde for. Obedecemos sem sequer fazer o esforço de dizer que sim. À morte se desconta vivendo, escrevia o poeta desde outra trincheira.
Podemos viver sem paixões e sem sonhos – eis que aqui a grande liberdade que esta sociedade nos oferece. Podemos falar sem freio, em particular daquilo que não conhecemos. Podemos expressar todas as opiniões do mundo, ainda as mais perigosas, e desaparecer detrás de seus ruídos. Podemos votar no candidato que preferimos, reclamando em troca o direito de nos lamentarmos. Podemos mudar de canal a cada instante, toda vez que nos pareça que nos estamos tornando dogmáticos. Podemos nos divertir em horas fixas e atravessar à velocidades sempre maiores ambientes tristemente idênticos. Podemos aparecer como jovens cabeças -duras antes de receber gelados golpes de senso comum. Podemos casar todas as vezes que quisermos, assim de sagrado é o matrimônio. Podemos nos ocupar em infinidades de coisas úteis e se não sabemos escrever, podemos nos converter em jornalistas. Podemos fazer política de mil modos, mesmo falando de guerrilhas exóticas. Tanto na carreira como nos afetos, podemos ser perfeitos na obediência, se é que não chegamos a mandar. Também a força de obediência pode nos converter em mártires, e esta sociedade, apesar das aparências, todavia tem tanta necessidade de heróis. Nossa estupidez não parecerá o certo maior que a dos demais. se não sabemos nos decidir não importa, deixamos que elejam os outros. Logo tomaremos posição, como se diz na linguagem da política e do espetáculo. As justificações nunca faltam, sobretudo em um mundo de tão boa boca.
Nesta grande feira de papéis cada um de nós tem um aliado fiel: o dinheiro. Democrático, por excelência, este não olha ninguém na cara. Gozando de sua companhia não existe mercadoria nem serviço algum que não nos sejam dados. Quem quer que seja seu portador, ambiciona com a força de uma sociedade inteira. É certo , este aliado nunca é suficiente e sobretudo, nunca se dá a todas as pessoas. Mas a sua é uma hierarquia especial, que unifica nos valores aquele que é oposto nas condições de vida. Quando se lhe possui se tem todas as razões. Quando falta, se tem não poucas complicações. Com um pouco de exercício, podemos transcorrer dias inteiros sem uma só idéia. Os ritmos cotidianos pensam em nosso lugar. Do trabalho ao “tempo livre”, tudo se desenvolve na continuidade da sobrevivência. Temos sempre algo a que nos agarrar. No fundo, a mais espantosa característica da sociedade atual é a de fazer conviver a “comodidades cotidianas” com uma catástrofe ao alcance das mãos. Junto a administração tecnológica do existente, a economia progressa na incontrolabilidade mais irresponsável. Se passa das diversões aos massacres de massa com a disciplina inconsciente de gestos calculados. A compra-venda de morte se estende a todo tempo e a todo espaço. O risco e o esforço audaz não existe mais, só existe a segurança ou o desastre, a rotina ou a ruína. Salvos ou afundados. Vivos, jamais.
Com um pouco de prática, podemos percorrer da rua de casa à escola, do escritório ao supermercado, do banco à discoteca, com os olhos fechados. Estamos realizando devidamente o provérbio daquele velho sábio grego: ” também os que dormem também regem a ordem do mundo.”
Há chegado a hora de romper com este nós, reflexo da única comunidade atual, a da autoridade e mercadoria.
Uma parte desta sociedade tem absoluto interesse em que a ordem siga reinando; a outra, em que tudo se derrube o mais rápido possível. Decidir de que lado está é o primeiro passo. Mas por todos os lados estão os resignados, verdadeira base de acordo entre as partes, os melhoradores do existente e seus falsos críticos. Em todo os lados, também em nossa vida, e é o autêntico lugar da guerra social, em nossos desejos, em nossa determinação assim como em nossas pequenas, cotidianas submissões.
Contra tudo que isto há que acudir as armas curtas (ai ferri corti), para sustentar finalmente um duelo mortal com a vida (veniri ai ferri corti com la vita).
– II –
As coisas que são necessárias ter aprendido para fazê-las, é fazendo-as que se aprende
Aristóteles
O segredo é começar seriamente.
A organização social atual não só atrasa, mas impede e corrompe toda a prática de liberdade. Para aprender o que é liberdade, não cabe outra possibilidade que experimentá-la, e para poder experimenta-la tem que ter o tempo e o espaço necessários.
A base fundamental da ação livre é o dialogo. Agora bem, duas são as condições de um autêntico discurso em comum: um interesse real dos indivíduos elas questões abertas às discussões ( problema de conteúdo) e uma livre indagação das possíveis respostas (problema de método). Estas duas condições devem realizar-se simultaneamente, desde e o momento em que o conteúdo determina o método, e vice-versa. Se pode falar de liberdade somente em liberdade. Se não se é livre ao responder, para que servem as perguntas? O diálogo existe somente quando os indivíduos podem falar sem mediações, ou seja, quando estão em uma relação de reciprocidade.Se o discurso se desenvolve em um único sentido, não há comunicação possível. Se alguém tem o poder de impor as perguntas, o conteúdo destas lhe será diretamente funcional ( e as respostas irão conter sujeição). À um súdito somente lhe pode fazer perguntas cujas respostas confirme seu papel de súdito. É desde este papel que o amo formulará as futuras perguntas. A escravidão consiste em seguir respondendo.
As investigações do mercado são, neste sentido, idêntica às eleições. A soberania do eleitor se corresponde com a soberania do consumidor, e vice-versa. A passividade televisiva se chama audiência; a legitimação do poder do Estado se chama povo soberano. Tanto num caso como no outro, os indivíduos não são outra coisa que reféns de um mecanismo que lhes concede o direito de falar depois de haver-lhe privado da faculdade de fazer. Quando se pode eleger somente entre um candidato e outro, qual o motivo do dialogo? Quando se pode eleger somente entre mercadorias e programas de tv diferentemente idênticos, qual o motivo da comunicação? Os conteúdos das questões tornam-se insignificantes porque o método é falso.
“Nada se assemelha mais a um representante da burguesia do que um representante do proletariado” escrevia em 1907 Sorel. Aquilo que os fazia idênticos era o fato de ser, precisamente, representativos. Dizer hoje o mesmo de um candidato de direita e um candidato de esquerda não é nem mais nem menos que uma trivialidade. os políticos, no entanto, não têm necessidade de serem originais ( disto se ocupam os publicitários) basta que saibam administrar tais trivialidades. A terrível ironia é que a mídia é definida como meios de comunicação e a feira do voto é chamada eleição (que num sentido original significa decisão livre e consciente).
O ponto é que o poder não admite nenhuma gestão diferente. Ainda querendo ( o que nos leva prontamente apara uma “utopia”, para imitar a linguagem dos realistas), nada importante pode ser pedido aos eleitores, desde o momento em que o único ato livre que estes poderiam cumprir – a única eleição autêntica – seria deixar de votar. O que vota espera perguntas insignificantes, já que as perguntas autênticas excluem a passividade e delegação. Nos expliquemos melhor.
Suponhamos que se peça através de um referendum a abolição do capitalismo (deixamos de lado o fato de que tal demanda , dadas as atuais relações sociais, é impossível). Seguramente a maioria dos eleitores votaria pelo capitalismo, pelo simples fato de que não se pode imaginar um mundo sem mercadorias e sem dinheiro saindo tranqüilamente de casa, da oficina ou de um supermercado. Mas se todavia votasse, nada mudaria porque uma demanda deste tipo deve excluir aos eleitores para permanecer autêntica. Uma sociedade inteira não se pode mudar por decreto. O mesmo raciocínio se pode fazer para demandas menos extremas. Tomemos o exemplo de um bairro. Se os habitantes pudessem (outras vez nos encontramos em plena “utopia”) expressar-se sobre a organização dos espaços de suas vidas (casas, ruas, praças, etc), o que sucederia? Digamos, em seguida, que a eleição dos habitantes seria em princípio inevitavelmente limitada, sendo os bairros resultado do deslocamento e da concentração da população em relação com as necessidades da economia e do controle social. Tratemos apesar de tudo de imaginar outra organização destes guetos. Sem temor de ser desmentidos, se pode afirmar que a maioria da população teria em relação a isso as mesmas idéias que a polícia. Se assim não fosse (se uma, ainda limitada, prática do diálogo provocasse o suprimento do desejo de novos ambientes), sobreviveria a explosão do gueto.
Como conciliar, mantendo constante a ordem social presente, o interesse do fabricante de automóveis e a vontade de respirar dos habitantes, a livre circulação dos indivíduos e o medo dos proprietários das lojas de luxo, o espaço de jogos das crianças e o cimento dos estacionamentos, dos bancos e dos centros comerciais?
E todas as casas vazias deixada em mãos da especulação? E os condomínios que se assemelham terrivelmente aos quartéis que se assemelham ás escolas, que se assemelham terrivelmente aos hospitais, que se assemelham terrivelmente aos manicômios? Deslocar um pequeno muro deste labirinto de horrores significa colocar em jogo o projeto inteiro. Quanto mais se distancia alguém do olhar policial sobre o ambiente, mais se aproxima ao enfrentamento com a polícia.
“Como pensar livremente à sombra de uma capela?”, escreveu uma mão anônima sobre o espaço sagrado de Sorbone durante o Maio francês. Esta impecável interrogação tem um alcance geral. Cada ambiente pensado econômica e religiosamente não pode mais que impor desejos econômicos e religiosos. Uma igreja excomungada continua sendo uma casa de deus. Em um centro comercial abandonado continuam conversando as mercadorias. O pátio de um quartel fora de uso todavia contém a marcha dos soldados. Neste sentido, tinha razão quem dizia que a destruição da Bastilha foi um ato de psicologia social aplicada.A Bastilha não poderia ser gerida de outro modo se não como uma prisão, porque seus muros continuariam relatando uma história de corpos e de desejos prisioneiros.
O tempo das prestações, das obrigações e do tédio desposa os espaços do consumo em bodas incessantes e fúnebres. O trabalho reproduz o ambiente social que reproduz a resignação ao trabalho. Se amam as noites frente a televisão porque se passou todo o dia no escritório ou no metrô. Estar calado na fábrica transforma os gritos do estádio em uma promessa de felicidade. A sensação de culpa na escola reivindica a irresponsabilidade idiota do sábado a noite, na discoteca. A publicidade dos outdoors faz sonhar somente a olhos saídos do Mc Donalds, etc.
Temos que saber experimentar a liberdade para ser livre. Temos que nos liberar para podermos faze experiências da liberdade. No interior da ordem social presente, o tempo e o espaço impedem a experiência da liberdade porque sufocam a liberdade da experiência.
– III –
“os tigres da cólera são mais sábios que os cavalos da inteligência.”
W.Blake
Somente transtornando os imperativos do tempo e do espaço social se podem imaginar novas relações e novos ambientes. O velho filósofo dizia que se deseja somente sobre a base daquilo que se conhece. Os desejos podem mudar somente se muda a vida que os fazem nascer. Para falar claro, a insurreição contra os tempos e lugares do poder é uma necessidade material e ao mesmo tempo psicológica.
Bakunin dizia que as revoluções são realizadas por 3/4 de fantasia e 1/4 de realidade. O que importa é entender onde nasce a fantasia que faz explodir a revolta generalizada. O desencadear-se de todas as paixões, como dizia o revolucionário russo, é a força irresistível da transformação. Por mais que tudo isso possa fazer sorrir aos resignados ou aos frios analistas dos movimentos históricos do capital, poderemos dizer – se dito jargão não nos desse indigestão – que uma idéia tal da revolução é extremamente moderna. As paixões são más portanto são prisioneiras, sufocadas por uma normalidade que é o mais frio dos gélidos monstros. No entanto, mas também o são porque a vontade de vida, antes de desaparecer sobre o peso de deveres e máscaras, se transforma em seu contrário. Submetida às obrigações cotidianas, a vida se nega repetidamente a si mesma e reaparece a figura do escravo; diante da busca desesperada por espaço, ela se faz presença onírica, contração física, tique nervoso, violência idiota e gregária. O insuportável das atuais condições de vida não é talvez testemunhado pela massiva difusão de psicofármicos, esta nova intervenção do Estado social?
O domínio administra todas as partes do cativeiro (cativitá), justificando aquilo que em câmbio é um produto seu, a maldade (cativeria). A insurreição acerta a conta com ambas.
Se não quer enganar a si mesmo e aos outros, quem quer que combata pela demolição do presente edifício social não pode esconder que a subversão é um jogo de forças selvagens e bárbaras. Algumas pessoas os chamavam cossacos, outras os chamavam gangues, no final das contas são os indivíduos a quem a paz social não lhes tirou a íra.
Mas como criar uma nova comunidade a partir da cólera? Terminemos de uma vez por todas com os ilusionismos da dialética. Os explorados não são portadores de nenhum projeto positivo, mesmo que fosse a sociedade sem classes – (tudo isso se parece muito de perto ao sistema produtivo). Sua única comodidade é o capital, do qual podem escapar somente na condição de destruir tudo aquilo que os fazem existir como explorados: salário, mercadoria, papéis sociais e hierarquia. O capitalismo não estabelece em absoluto as bases de sua própria superação em direção ao comunismo – a famosa burguesia “que forjam as armas que lhe darão a morte” – mas sim as bases de um mundo de horrores. Os explorados não têm nada que autogestionar, a exceção de sua própria negação como explorado. Somente assim, junto a eles desaparecerão seus amos, seus guias, seus apologistas incentivados das mais diversas maneiras. Nesta “imensa obra de demolição urgente” deve encontrar-se, o quanto antes, a alegria. “Bárbaro” para os gregos, não significa somente “estrangeiro”, mas também “balbuciante”, tal como se definia com desprezo àquele que não falava corretamente a língua da pólis. Linguagem e território são duas realidades inseparáveis. A lei fixa os limites que a ordem dos Nomes faz respeitar. todo poder têm seus bárbaros, todo discurso democrático tem seus próprios balbuciantes gagos. A sociedade da mercadoria, com a expulsão e o silêncio, pretende fazer de sua obstinada presença um nada. E sobre este nada a revolta tem fundado sua causa. A exclusão e as colônias internas, nenhuma ideologia do diálogo e da participação jamais poderá mascará-las totalmente. Quando a violência cotidiana do Estado e da economia faz explodir a parte má, não podemos nos surpreender se alguém coloca os pés sobre a mesa e não aceite discussões. Somente então as paixões tiram de cima de si um mundo que se derruba de morte. Os bárbaros estão no canto da esquina.
– IV –
“Devemos abandonar todo o modelo e estudar nossas possibilidades”
E. A. Poe
Necessidade de insurreição. Necessidade, obviamente não no sentido de inelutabilidade (um sucesso que antes ou depois deve suceder), mas no sentido de condição concreta de uma possibilidade. Necessidade do possível. O dinheiro nesta sociedade é necessário, uma vida sem dinheiro é possível. Para fazer experiência disto é necessário destruir esta sociedade. Hoje se pode fazer experiência somente daquilo que é socialmente necessário. Curiosamente, aqueles que consideram a insurreição como um trágico erro (ou também, segundo os gostos, um irrealizável sonho romântico), falam muito de ação social e de espaços de liberdade para experimentar. No entanto, basta espremer um pouco raciocínios deste tipo para que saia todo o suco. para atuar livremente é necessário, como se disse, falar-se sem mediações. E então que se nos diga: sobre que coisa, quanto e onde se pode dialogar atualmente?
Para discutir livremente se deve arrancar tempo e espaço dos imperativos sociais. Em suma, o diálogo é inseparável da luta. É inseparável materialmente (para falarmos devemos nos subtrair do tempo imposto e nos agarrar aos espaços possíveis) e psicologicamente (os indivíduos amam falar daquilo que fazem porque somente então, as palavras transformam a realidade). O que se esquece é que vivemos todos em um gueto, ainda se não pagamos o aluguel da casa ou se nosso calendário conta com muitos domingos. Se não conseguirmos destruir este gueto, a liberdade de experiência se reduz a algo bem miserável.
Muitos libertários pensam que a mudança da sociedade pode e deve acontecer gradualmente, sem uma ruptura repentina. por isso falam de “esferas públicas não-estatais” onde elaborar novas idéias e novas práticas. deixando de lado os aspectos decididamente cômicos da questão (onde não há estado? Como colocar-lhe entre parênteses?), o que se pode notar é que o referente ideal destes discursos segue sendo o método autogestionário e federalista experimentado pelos subversivos em alguns momentos históricos (a comuna de paris, a Espanha revolucionária, a Comuna de Budapeste, etc). O pequeno pormenor que se descuida, no entanto, é que a possibilidade de se falar e de mudar a realidade, os rebeldes a têm tomado em armas. Em definitivo se esquecem um pequeno detalhe; a insurreição. Não se pode descontextualizar um método (a assembléia de bairro, a decisão direta, a conexão horizontal, etc) do marco que o tem feito possível, nem muito menos enfrentar isto contra aquilo (com raciocínios do tipo ” não serve atacar o Estado, necessita-se de se auto-organizar, concretizar a utopia”). Ainda antes de considerar, por exemplo, o que tem significado – e que poderia significar hoje – os conselhos proletários, faz falta considerar as condições nas quais nasceram. (1905 na Rússia, 1918 – 1921 na Alemanha e na Itália, etc). Se tem tratado de momentos insurrecionais. Que alguém nos expliquem como é possível, hoje, que os explorados decidam em primeira pessoa sobre as questões de uma certa importância sem romper a força a normalidade social; depois se poderá falar de autogestão e de federalismo. Antes de discutir sobre o que quer dizer autogestionar as atuais estruturas produtivas ” depois da revolução”, se necessita afirmar uma trivialidade básica: os patrões e a policia não estariam de acordo. não se pode discutir sobre uma possibilidade descuidando as condições que a fazem concreta. Toda hipótese de libertação está ligada à ruptura com a sociedade atual. damos o último exemplo. Também em um âmbito libertário se fala de democracia direta. Se pode responder de imediato que a utopia anarquista se opõe ao método da decisão da maioria. Corretíssimo. Mas o ponte é que nenhum fala concretamente de democracia direta. Deixando de lado aqueles que entendem por democracia direta seu exato contrário, à dizer a constituição de listas de eleitores e a participação nas eleições municipais, tomemos aqueles que imaginam reais assembléias cidadãs as quais fala-se sem mediações.
Sobre que coisas poderiam se expressar os cidadãos? Como poderiam responder de outro modo sem mudar ao mesmo tempo as perguntas? Como manter a distinção entre uma suposta liberdade política e as atuais condições econômicas, sociais e tecnológicas? Em suma, apesar de todos os rodeios que demos ao redor deste assunto, o problema da destruição física. A menos que não se pense que uma sociedade centralizada tecnologicamente pode ser ao mesmo tempo federalista; ou também que possa existir a autogestão generalizada em autênticas prisões, como são as cidades atuais. Dizer que tudo isso se muda gradualmente significa somente mesclar pessimamente as cartas. Sem uma revolta generalizada não se pode começar mudança alguma. A insurreição é a totalidade das relações sociais que, já mascarada pelas especializações do capital, se abre a aventura da liberdade. A insurreição por si só não nos dá respostas, é verdade, somente começa a fazer as perguntas. O ponto então não é atuar gradualmente ou atuar aventurísticamente. o ponto é: atuar e sonhar com fazê-lo.
A crítica da democracia direta ( para seguir com o exemplo) deve considerar a esta última em sua dimensão concreta. Somente assim se pode ir mais além, pensando quais são as bases sociais da autonomia individual. Somente assim este mais além pode transformar-se de imediato em método de luta. Hoje os subversivos se encontram na situação de ter que criticar as hipóteses alheias definindo-as de um modo mais correto do que o fazem seus próprios sustentadores.
Para afiar melhor as próprias armas (i priori ferri).
– V –
” É uma verdade axiomática, óbvia, que a revolução não se pode fazer senão quando haja forças suficientes para fazê-la. Mas é uma verdade histórica que as forças que determinam a evolução e as revoluções não se calculam com as linhas dos censos.”
E. Malatesta
Está fora de moda acreditar que a transformação social é ainda possível. As “massas”, se diz, estão em uma profunda sonolência e integradas as normas sociais. De uma similar constatação se pode extrair pelo menos duas conclusões: a revolta não é possível; a revolta é possível somente se tratando de alguns poucos. A primeira conclusão pode de um lado decompor-se em um discurso abertamente institucional (necessidade das eleições, das conquistas legais, etc) e em outro em reformismo social (auto-organização sindical, lutas pelos direitos coletivos, etc). Da mesma maneira, a segunda conclusão pode fundar tanto um discurso vanguardista clássico como um discurso antiautoritário de agitação permanente.
Como premissa se pode fazer notar que, no curso da história, certas hipóteses aparentemente opostas tem compartido um fundamento comum. Se toma, por exemplo, a oposição entre social-democrata e bolchevismo, resulta claro que ambas partiam do pressuposto de que as massas não têm um consciência revolucionária e que portanto devem ser dirigidas. Social democratas e bolcheviques diferiam somente no método – partido reformista ou partido revolucionário; estratégia parlamentar ou conquista violenta do poder – com o qual aplicar um idêntico programa: dar desde o exterior a consciência aos explorados.
Tomemos a hipótese de uma prática subversiva “minoritária” que rechaça o modelo leninista. Desde uma perspectiva libertária, ou se abandona todo discurso insurrecional (a favor de uma revolta declaradamente solitária), ou, mais cedo ou mais tarde se necessitará também colocar o problema do alcance social das próprias idéias e práticas. Se não se quer resolver a questão no âmbito dos milagres lingüísticos (por exemplo dizendo que as teses que se sustentam estão já na cabeça dos explorados, ou que a própria rebelião é já parte de uma condição difundida) se impõe de fato um dado: estamos ilhados – o que quer dizer: somos poucos.
Atuar sendo poucos não só constitui um limite, senão que representa um modo distinto de pensar a transformação social mesma. Os libertários são os únicos que imaginam uma dimensão de vida coletiva não subordinada à existência de centros diretivos. A autêntica hipótese federalista é a idéia que faz possível o acordo entre as livres uniões dos indivíduos. As relações de afinidade são um modo de conceber a união, já não sobre a base da ideologia e da adesão quantitativa, se não a afinidade nos projetos e a autonomia da ação individual não tem sentido se não podem ampliar-se sem serem sacrificadas por supostas necessidades superiores. A união horizontal é aquilo que concretiza qualquer prática de liberação: uma união informal, de fato, capaz de romper com toda representação. Uma sociedade centralizada não pode renunciar ao controle policial e ao mortal aparato tecnológico. Para isto, quem não sabe imaginar uma comunidade sem autoridade estatal não tem instrumentos para criticar a economia que está destruindo o planeta; quem não sabe pensar uma comunidade de únicos não tem armas contra a mediação política. Ao contrário, a idéia da livre experiência e da união de afinidades como base de novas relações faz possível uma completa volta social. Somente abandonando toda idéia de centro ( a conquista do Palácio de Inverno ou, com o passar do tempo, da televisão do estado) se pode construir uma vida sem imposições e sem dinheiro. Neste sentido, o método do ataque difuso é uma forma de luta que traz consigo um mundo distinto. Atuar quando todos predicam a espera, quando não se pode contar com grandes séquitos, quando não se sabe por antecipação se obterão resultados – atuar assim significa já afirmar por que coisa combatemos: por uma sociedade sem medida. É aqui então que a ação em pequenos grupos de afinidades contém a mais importante das qualidades – a de não ser uma simples tomada de consciência tática, senão de realizar ao mesmo tempo o próprio fim. Liquidar a mentira da transição ( a ditadura antes do comunismo, o poder ante da liberdade, o salário antes da tomada do montante, a certeza do resultado antes da ação, os pedidos de financiamentos antes da expropriação, os “bancos éticos”, antes da anarquia, etc) significa fazer da própria revolta um modo diferente de conceber as relações. Atacar de imediato a hidra tecnológica quer dizer pensar um vida sem polícia de uniforme branco (o que significa: sem a organização econômica e científica que o faz necessário); atacar subitamente os instrumentos da domesticação midiática quer dizer criar relações livres de imagens ( o que significa: livre da passividade cotidiana que as fabrica). Quem grita que já não é mais – ou não é ainda – tempo de revolta, nos revela de antemão qual a sociedade pela qual combate. Pelo contrário, sustentar a necessidade de uma insurreição social, de um movimento sem contenção que rompa com o Tempo histórico para fazer emergir o possível: significa dizer algo simples: não queremos dirigentes. Hoje o único federalismo concreto é a rebelião generalizada. Para rechaçar toda a forma de centralização se necessita ir mais além da idéia quantitativa de luta, é dizer a idéia de chamar a unir-se aos explorados para um choque frontal com o poder. Se necessita pensar outro conceito de força – para queimar as linhas do censo e mudar a realidade.
“Regra principal: não atuar em massa. Conduzir uma ação de três ou quatro no máximo. Deve existir tantos pequenos grupos quanto o possível, e cada um deles deve aprender a atacar e desaparecer velozmente. A polícia trata de esmagar a um grupo de mil pessoas com um só grupo de 100 cossacos. É mais fácil enfrentar a uma centena de homens do que a um só, especialmente se este golpeia por surpresa e desaparece misteriosamente. A polícia e o exército não terão poder se Moscou se cobre destes pequenos destacamentos impenetráveis […] Não ocupe fortalezas. As tropas sempre serão capazes de retomá-las ou simplesmente de destruí-las graças à sua artilharia. Nossas fortalezas serão os pátios internos ou qualquer lugar desde o qual seja acessível golpear e fácil sair. Se tiverem que tomar estes lugares, não encontraria a ninguém e perderiam grande quantidade de homens. É impossível para eles agarrar a todos porque deveriam, para isto, encher cada casa de cossacos.”
Aviso aos insuregentes, Moscou, 11 de dezembro de 1905
– VI –
” A poesia consiste em fazer matrimônios e divórcios ilegais com as coisas”
F. Bacon
Pensar outro conceito de força. Quem sabe seja esta a nova poesia. No fundo, o que é a revolta social senão um jogo generalizado de matrimônios e divórcios entre as coisas?
A força revolucionária não é uma força igual e contrária ao poder. Se assim fosse, estaríamos já derrotados porque cada mudança seria o eterno retorno da constrição. Tudo se reduziria a um choque militar, a uma macabra dança de estandartes. Mas os movimentos reais escapam sempre ao olhar quantitativo. O estado e o capital têm os mais sofisticados sistemas de controle e de repressão, como levantar-se frente a este Moloch? O segredo consiste na arte de decompor e recompor. O movimento da inteligência é um jogo contínuo de decomposições e de correspondências. O mesmo vale para a prática subversiva. Criticar a tecnologia, por exemplo, significa compor o quadro geral, olhá-la não como um simples conjunto de máquinas, mas antes como um relação social, como sistema; significa compreender que um instrumento tecnológico reflete a sociedade que lhe produziu e que sua introdução modifica as relações entre os indivíduos. Criticar a tecnologia significa rechaçar a subordinação de cada atividade humana aos tempos da ganância. De outro modo seria impossível atacá-la. O mesmo vale para as escolas, os quartéis, os escritórios. Se trata de realidades inseparáveis das relações hierárquicas gerais e mercantis, mas que se concretizam em lugares e homens determinados.
Como nos tornarmos visíveis – nós, sendo poucos – ante os estudantes, ante os trabalhadores, ante os desempregados? Se pensa em termos de consenso e de imagem (fazer-se visível, justamente), a resposta se dá por entendida: sindicatos e especuladores políticos profissionais são mais fortes do que nós. uma vez mais, o defeito radica na capacidade de compor-descompor. O reformismo atua sobre o detalhe, e de modo quantitativo: se move com grandes números para mudar alguns elementos isolados do poder. Uma crítica global da sociedade, por outro lado, pode fazer surgir uma visão qualitativa da ação. Justamente porque não existem centros ou sujeitos revolucionários aos quais subordinar os próprios projetos, toda a realidade social remete ao todo do qual é parte.Já se trata de contaminação, de cárcere ou de urbanística, um discurso realmente subversivo termina por colocar tudo em questão. Hoje mais que nunca, um projeto quantitativo (juntar aos estudantes, aos trabalhadores, aos desempregados em organizações permanentes com um programa específico) Não pode fazer mais que atuar sobre o detalhe, tirando das ações sua força principal – a de instalar questões irredutíveis ás separações categóricas (estudantes, trabalhadores, imigrantes, homossexuais, etc) mas ainda tendo em conta que o reformismo é cada vez mais incapaz de reformar algo (pensa-se no desemprego, falsamente apresentado como um desgaste – que pode ser resolvido – na racionalidade econômica). Alguém dizia que até o pedido de uma comida não envenenada é em si mesmo um projeto revolucionário, desde o momento em que para satisfazê-lo seria necessário mudar todas as relações sociais. Toda reivindicação dirigida a um interlocutor preciso leva consigo sua própria derrota, pela mesma razão de que nenhuma autoridade pode resolver, nem que se queira, um problema de alcance geral. A quem dirigir-se para enfrentar a contaminação do ar?
Aqueles trabalhadores que durante uma greve selvagem levavam uma faixa sobre a qual estava escrito Não pedimos nada, haviam compreendido que a derrota está na própria reivindicação (“contra o inimigo a reivindicação é eterna”). não lhe resta a revolta outra solução mais que tomar tudo para si. Como dizia Stiner: ” ainda que vocês lhes concedam tudo o que peçam, eles lhes pedirão sempre mais, porque o que querem é nada menos que isto: o fim de toda concessão”.
E então? Então se pode pensar em atuar em poucos sem atuar isoladamente, com a consciência de que qualquer bom contato serve mais, em situações explosivas, que os grandes números. Muito a princípio, certas lutas sociais tristemente reivindicativas desenvolvem métodos mais interessantes que os objetivos (um grupo de desempregados, por exemplo, que pedem trabalho e termina por queimar um escritório de empregos). É verdade que se pode estar em desacordo ao dizer que o trabalho não deve ser buscado, senão destruído. Ou se pode tratar de unir a crítica da economia com aquele escritório tão apaixonadamente queimado, ou a crítica aos sindicatos num ato de sabotagem. Cada objetivo individual na luta contém a violência de toda as relações sociais prontas para explodir. A banalidade de suas causas imediatas, como sabemos é o cartão de visita das revoltas através da história. O que um grupo de camaradas decididos pode fazer em tal situação? Não muito, ao menos eles tenha já pensado (por exemplo) sobre como distribuir um folheto ou em qual ponto da cidade estender um protesto; e, o que é mais provável, se uma inteligência alegre e ilegal os façam esquecer os números e as grandes estruturas organizacionais.
Sem esperar reviver o mito da Greve geral é o desencadear da insurreição, está claro o suficiente que a interrupção de toda atividade social é ainda decisiva. A ação subversiva deve mover-se em direção da paralisia da normalidade, não importa o que originalmente causou o conflito. Se os estudantes continuarem a estudar, se os trabalhadores – aqueles que restam deles – e os empregados de escritório continuarem a trabalhar, o desempregado se preocupar com o emprego, nenhuma mudança será possível. A prática revolucionária sempre será acima das pessoas. Qualquer organização separada das lutas sociais não serve nem para desencadear a revolta nem para expandir e defender seu alcance. Se é verdade que os explorados se aproximam aqueles que sabem garantir, no curso das lutas maiores melhorias econômicas – isto é, se é verdade que toda luta reivindicativa tem um caráter necessariamente reformista -, são os libertários quem podem, através de seus métodos (a autonomia individual, a ação direta, o conflito permanente), impulsionar-lhes a ir mais além do modelo da reivindicação, a negar todas as identidades sociais (professor, balconista, operário, etc). Uma organização reivindicativa permanentemente específica dos libertários ficaria à margem das lutas (somente poucos explorados poderiam escolher fazer parte), ou perderia sua própria peculiaridade libertária (no âmbito das lutas sindicais, os mais profissionais são os sindicalistas). Uma estrutura organizativa formada por revolucionários e explorados pode permanecer conflitiva somente se encontra ligada à duração de uma luta, a um objetivo específico, à perspectiva do ataque; enfim, se é uma crítica de fato do sindicato e da colaboração com os patrões.
No momento não se pode chamar precisamente “ressaltada” a capacidade dos subversivos de lançar lutas sociais (antimilitaristas, contra nocividades ambientais, etc). resta a outra hipótese (fica, bem entendido, para o que não respeita que ” as pessoas são cúmplices e resignadas”, e boas noites aos sonhadores), a de uma intervenção autônoma em lutas – ou em revoltas mais ou menos extensas – que nascem espontaneamente. Se buscam discursos claros sobre a sociedade a que os explorados lutam (como tem pretendido algum teórico sutil frente a uma recente onda de greves), podemos ficar tranqüilamente em casa. Se nos limitamos – algo no fundo não muito distinto – a “aderir criticamente”, se agregarão nossas bandeiras vermelhas e negras ás dos partidos e sindicatos. Uma vez mais a crítica do detalhe se casa com o modelo quantitativo. Se se pensa quando os desempregados falam de direito ao trabalho se deve atuar nesta linha (com as dívidas distingo a propósito entre assalariado e “atividade socialmente útil”), então o único lugar da ação parece ser a praça povoada de manifestantes. Como sabia o velho Aristóteles, sem unidade de tempo e espaço não há representação possível.
Mas quem disse que aos desempregados não lhes pode – praticando-lhes – falar de sabotagem, de abolição do direito ou de negação de pagar o aluguel? Quem disse que durante uma greve de praça a economia não pode ser criticada em outro lugar? Dizer aquilo que o inimigo não espera e estar onde não nos aguarda. Esta é a nova poesia.
– VII –
“Somos muito jovens, não podemos esperar mais”.
Pichação em Paris
A força de uma insurreição é social, não militar. O critério para avaliar o alcance de uma revolta generalizada não é o choque armado, senão melhor a amplitude da paralisia da economia, da tomada de posse de lugares de produção e distribuição, da gratuidade que queima todo o cálculo, da deserção das obrigações e dos papéis sociais; em breve, a reviravolta da vida. Nenhuma guerrilha, por mais eficaz que seja, pode substituir este grandioso movimento de destruição e de transformação. A insurreição é o leve emergir da trivialidade: nenhum poder se pode reger sem a servidão voluntária de quem o padece. Nada melhor do que a revolta revela que são os mesmos explorados que fazem funcionar a máquina assassina da exploração. A interrupção estendida e selvagem da atividade social desgarra que uma vez o véu da ideologia e faz aparecer as reais relações de força; o estado se mostra como é – a organização política da passividade.
A ideologia de um lado e a fantasia de outro revelam então todo seu peso material. Os explorados não fazem mais que descobrir uma força que sempre tiveram, terminando com a ilusão de que sempre tiveram, terminando com a ilusão de que a sociedade se reproduz por si mesma – ou de que alguma toupeira cave por eles. eles são insurgentes contra seu próprio passado de obediência – seu estado passado – e hábitos erigidos em defesa do velho mundo. A conjuração dos insurretos é a única ocasião na qual a “coletividade” não é a noite que denuncia a policia o vôo dos vaga-lumes, nem a mentira que faz da soma dos mal- estares individuais. Isto é o que da a distinção da força da cumplicidade. O capital é acima de tudo uma comunidade de informantes, união que debilita indivíduos, unidade que nos mantém divididos. A consciência social é uma voz interior que repete: “os outros aceitam”. A força real dos explorados se levanta assim contra eles. A insurreição é o processo que libera essa força, unindo-lhes ao prazer de viver e a autonomia; é o momento em que se pensa reciprocamente que o melhor que se pode fazer pelos outros é liberar-se a si mesmos. Neste sentido, é “um movimento coletivo de realização individual”.
A normalidade do trabalho e do “tempo livre”, da família e do consumismo, mata toda má paixão pela liberdade. (Neste mesmo momento, enquanto escrevemos estas linhas, estamos separados de nossos semelhantes, e esta separação libera o Estado do peso de nos proibir de escrever). Sem uma fratura violenta com o costume nenhuma mudança é possível. Mas a revolta é sempre obra de minorias. Ao redor está a massa, pronta para transformar-se em um instrumento de domínio (para o servo que se rebela, o “poder” é ao mesmo tempo a força do amo e a obediência dos outros servos) ou para aceitar por inércia a mudança em ação. A maior greve geral selvagem da história – a do maio francês – não tem envolvida mais que 1/5 da população de um único Estado. Disto não se segue como única conclusão a de apropriar-se do poder para dirigir as massas, nem a de que é necessário apresentar-se como a consciência do proletariado; senão, simplesmente que não existe salto algum entre a sociedade atual e a liberdade. A atitude servil e passiva não é um assunto que se resolve em um dia ou em um mês. Seu contrário deve ganhar espaço e tomar seu tempo. A reviravolta social não é outra coisa que a condição de partida.
O desprezo pela “massa” não é qualitativo, senão melhor ideológico, ou seja, subordinado às representações dominantes. O povo do capital existe, certamente, mas não tem contornos precisos. É sempre da massa anônima de onde saem, se amotinando, o desconhecido e a vontade de viver.
Dizer que somos os únicos rebeldes num mundo de submetimentos é no fundo reconfortante, porque acaba a partida de antemão. Nós simplesmente dizemos que não sabemos quem são nossos cúmplices e que temos a necessidade de uma tormenta social para descobrí-los. Hoje cada um de nós decide em que medida os outros não podem decidir (abdicando da possibilidade de eleição própria fazemos funcionar um mundo de autômatos). Durante a insurreição a possibilidade de eleger se estende com as armas e com as armas há que defendê-la, porque é sobre seu cadáver que nasce a reação. Por mais minoritário (mas em base a que ponto de referência?) que seja a respeito de suas forças ativas, o fenômeno insurrecional pode assumir dimensões extremamente amplas, e é neste ponto que ele revela sua natureza social. Quanto mais extensa e entusiasta é a rebelião, menos se transforma o choque militar em seu critério de medida. Com a extensão da auto-organização armada dos explorados toda a fragilidade da ordem social e se afirma a certeza de que a revolta, assim como as relações hierárquicas e mercantis, está em todos os lados. O que pensa na revolução como um golpe de Estado, por outro lado, tem um conceito militar do choque. Qualquer organização que se coloca como vanguarda dos explorados tem que ocultar o fato de que o domínio é uma relação social e não um simples bairro geral a conquistar; de outro modo, como justificaria seu próprio papel?
O mais útil que se pode fazer com as armas é torná-las as mais inúteis possíveis. Mas o problema das armas fica num plano abstrato se não o liga à relação entre revolucionários e explorados, entre organização e movimento real.
Muito a princípio, de qualquer maneira, os revolucionários têm pretendido ser a consciência dos explorados, representar o grau de maturidade subversiva. O “movimento social” se tem transformado assim na justificação do partido (que na versão leninista se transforma em uma elite de profissionais da revolução). O círculo vicioso é que quanto mais nos separamos dos explorados, mais devemos representar uma relação que falta. A subversão se reduz a si a suas próprias práticas, e a representação desencadeia a organização de uma fraude ideológica – a versão burocrática da apropriação capitalista. O movimento revolucionário se identifica então com sua expressão “mais avançada”, a qual realiza o conceito. A dialética hegeliana da totalidade oferece uma armação perfeita para esta construção.
Mas existe também uma critica da separação e da representação que justifica a espera e valoriza o papel dos críticos. Com o pretexto de não separar-se do “movimento social” se acaba por denunciar toda prática de ataque enquanto a “fuga para frente” ou mera “propaganda armada”. Uma vez mais o revolucionário está chamado a “desvelar”, talvez em sua mera inação, as condições reais dos explorados. Em conseqüência, nenhuma revolta é possível por fora de um movimento social visível. O que atua.], então, deve necessariamente querer substituir os proletários. O único patrimônio a defender chega a ser a “critica radical”, a “lucidez revolucionária”. A vida é miserável, e portanto não se pode mais que teorizar sobre a miséria. A verdade ante tudo. Deste modo, a separação entre subversivos e explorados não é em absoluto eliminada, senão somente deslocada. nós não somos explorados junto a outros explorados; nossos desejos, nossa raiva e nossas debilidades não formam parte do antagonismo de classes. Em absoluto podemos atuar quando quisermos: temos uma missão – ainda que certamente não se chame assim – a cumprir. Há quem se sacrifica pelo proletário com a paixão e há quem o faz com a passividade.
Este mundo nos está envenenado, nos restringe a atividades inúteis e nocivas, nos impõe ter a necessidade do dinheiro e nos priva de relações apaixonantes. Estamos envelhecendo entre homens e mulheres sem sonhos, estrangeiros em um presente que não deixa espaço a nossos impulsos mais generosos. não somos partidários de abnegação alguma. É simplesmente que o que esta sociedade sabe oferecer como o melhor (a carreira, a fama, a vitória imprevista, o “amor”), não nos interessa. O mando nos repugna tanto quanto a obediência. Somos explorados como os outros e queremos terminar o quanto antes com a exploração. Para nós, a revolta não necessita de outras justificativas.
Nossa vida nos escapa e todo o discurso de classe que não parte disso não é outra coisa que uma mentira.
Não queremos dirigir nem sustentar movimentos sociais, senão participar os que existem na medida em que reconheçamos neles exigências comuns. Desde uma perspectiva desmedida de liberação, não há forma de lutas superiores. A revolta necessita de tudo, diários e livros, armas e explosivos, reflexões e blasfêmias, venenos, punhais e incêndios. O único problema interessante é como misturá-los.
– VIII –
“é fácil golpear a uma pássaro de vôo uniforme”
B.Gracián
O desejo de mudar o quanto antes a própria vida não só o compreendemos, senão que este é o único critério com o qual buscamos os nossos cúmplices. O mesmo vale para o que se pode chamar uma necessidade de coerência. A vontade de viver as próprias idéias e de criar a teoria a partir da própria vida não é certamente a busca de exemplos (e de seu revés paternalista e hierárquico), senão antes o rechaço de toda ideologia, incluída a do prazer. De quem se alegra dos espaços que consegue recortar e salvaguardar para si nesta sociedade, nos separa, ainda antes da reflexão, o próprio modo de palpar a existência. Mas igualmente distantes sentimos a quem fosse desertar da normalidade cotidiana para confiar-se a mitologia da clandestinidade e da organização combatente, ou seja para encerrar-se em outras jaulas. Não há nenhum papel, por mais legalmente perigoso que seja, que possa substituir o câmbio real das relações. No há atalhos ao alcance das mãos, não existe um salto imediato ao mais além. A revolução não é uma guerra. A infausta ideologia das armas já transformou, no passado, a necessidade de coerência de poucos no gregarismo dos demais. Que as armas se dirijam de uma vez por todas contra a ideologia.
Quem tem a paixão da desordem social e uma visão “pessoal” da luta de classes, quer fazer algo de imediato. Se analisa as transformações do capital e do Estado, é para decidir-se atacá-los, não por certo para ir-se a dormir com as idéias mais claras. Se não tem introjetado as proibições e as distinções da lei e da moral dominante, trata de usar todos os instrumentos para determinar as regras do próprio jogo. A pluma e o revólver são por iguais armas para ele, a diferença entre o escritor e o soldado, para os quais se trata de assuntos profissionais e em definitivo de identidades mercantis. O subversivo é subversivo ainda que sem pluma e sem revólver, enquanto possua a arma que contém a todas as armas: a própria determinação. A “luta armada” é uma estratégia que ode colocar-se a serviço de qualquer projeto. Ainda hoje a guerrilha usada por organizações cujo programa é em essência social-democrata; simplesmente, sustentam suas reivindicações com uma prática militar. A política pode se fazer também com as armas. Em qualquer trato com o poder – ou seja, em qualquer relação que tenha a este último como interlocutor, ou inclusive como inimigo – o que quer negociar deve situar-se como força representativa. Representar uma ordem social significa, desde esta perspectiva, reduzi-la à própria organização. Não se quer, deste modo, a luta armada como extensa e espontânea, senão ligada às diversas faces dos tratos. A organização gestionará os resultados. As relações entre os membros da organização e entre esta última e o mundo exterior refletem em conseqüência o que é um programa autoritário; levam no coração a hierarquia e a obediência.
Para quem se põe como meta a conquista violenta do poder político, o problema não muito distinto. Se trata de fazer propaganda da própria força vanguarda capaz de dirigir o movimento revolucionário.
A “luta armada” se apresenta como a força superior dos confrontos sociais. Quem é mais representativo militarmente – devido ao efeito espetacular das ações – constitui então o autêntico partido armado. os processos e os tribunais populares se apresentam como a conseqüente posta em cena de quem deseja substituir o Estado.
O estado, por sua parte, tem todo o interesse de reduzir a ameaça revolucionária a algumas organizações combativas, para transformar a subversão em um encontro entre dois exércitos: as instituições por um lado e o partido armado pelo outro. O que o domínio teme é a revolta generalizada e anônima. A imagem midiática do “terrorista” atua junto a polícia na defesa da paz social. o cidadão aplaude ou se assusta, mas se mantém sempre como cidadão, ou seja, como espectador.
É a maquiagem reformista do existente o encarregado de alimentar a mitologia armada, produzindo a falsa alternativa entre política legal e política clandestina.
Alcança com notar quantos sinceros democratas de esquerda se comovem com a guerrilha no México ou na América Latina. A passividade necessita sempre de guias e de especializações. Quando se desilude com os tradicionais, se cotovela com os novos.
Uma organização armada – com um programa e uma sigla – específica dos revolucionários, pode ter certamente características libertárias, assim como a revolução que muitos anarquistas querem é sem dúvida, também, uma “luta armada”. Mas alcança? Se reconhecemos a necessidade de organizar, no devir da luta insurreta, o fato armado; se sustentamos a possibilidade, desde agora, de atacar as estruturas e os homens de domínio; se consideramos decisiva, enfim, a união horizontal entre os grupos de afinidade nas práticas de revoltas, criticamos a perspectiva de quem apresenta as ações armadas como o real ir mais além dos limites das lutas sociais e atribui assim a uma forma de luta um papel superior às outras. Por outro lado, vemos o uso de siglas e programas a criação de uma identidade que separa os revolucionários dos demais explorados, fazendo-lhes ao mesmo tempo visíveis aos olhos do poder, ou seja, representáveis. O ataque armado, neste sentido, não é mais um dos tantos instrumentos da própria liberação, senão uma expressão que se carrega de valor simbólico e que tende a apropriar-se de uma rebelião anônima. A organização informal como fato ligado a existência das lutas, se transforma em uma estrutura decisória, permanentemente e formalizada. Uma ocasião para encontrar-se nos próprios projetos se transforma em um projeto em si mesmo. A organização começa por reproduzir-se a si mesma, exatamente como as estruturas quantitativas reformistas. Segue invariavelmente a triste seqüência de comunicados de reivindicações e de documentos progmátios nos quais se alça a voz para encontrar-se logo perseguindo uma identidade que existe somente por ter sido declarada. Ações de ataques de todos semelhantes a outra simplesmente anônimas parecem então representar um salto qualitativo na prática revolucionária. Reaparecem os esquemas da política e se começa a voar de um modo uniforme.
Certamente a necessidade de organizar-se é algo que pode acompanhar sempre a prática dos subversivos, para além das exigências transitórias de uma luta. Mas para se organizar tem necessidade de acordos vivos e concretos, não de uma imagem em busca de refletores.
O segredo do jogo subversivo é a capacidade de fazer em pedaços os espelhos deformantes e de se encontrar cara a cara com as próprias nudezas. A organização é o conjunto real dos projetos que a fazem viver. todo o resto é prótese política ou não é nada.
A insurreição é muito mais que uma “luta armada”, porque nela o antagonismo generalizado é uno com a reviraveolta da ordem social. O velho mundo é invertido na medida em que os explorados insurgentes estão todos armados. Somente então as armas não são a expressão separada de alguma vanguarda, monopólio de futuros patrões e burocratas, senão antes a condição concreta da festa revolucionária, a possibilidade coletiva de estender e defender a transformação das relações sociais. Fora da ruptura insurrecional, a prática subversiva é ainda menos a “luta armada”, salvo por querer restringir o imenso campo das próprias paixões a só alguns instrumentos. Questão de se contentar dos papéis já fixos ou de buscar a coerência no ponto mais profundo: a vida.
Então realmente na revolta generalizada poderíamos descobrir, a contraluz , uma maravilhosa conjuração dos eus para criar uma sociedade sem chefes e sem dormidos. Uma sociedade de livres e únicos.
– IX –
“não nos peças a fórmula que possa abrir-te mundos, certamente alguma sílaba perdida e seca como um ramo.
Hoje somente isso podemos dizer-te, aquilo que não somos, aquilo que não queremos.”
E. Montale
A vida não pode ser somente algo ao que se agarrar. É uma pensamento floresceu a todos, pelo menos uma vez. Temos uma possibilidade que nos fazem mais livres que os deuses: a de irmos. É uma idéia para saborear até o futuro. Nada e ninguem nos obriga a viver. Nem sequer a morte. Por isso nossa vida é uma tábua rasa, uma tabuinha que ainda não foi escrita e que então contêm todas as palavras possíveis. Com uma liberdade similar não podemos viver como escravos. A escravidão está feita para quem está condenado a viver, para quem está destinado a eternidade, não para nós. Para nós está o desconhecido.
O desconhecido de ambientes nos quais se perder, de pensamentos jamais recorridos, de garantias que explodem, de perfeitos desconhecidos a quem regula a vida. O desconhecido de um mundo ao qual poder doar-lhe os excessos do amor de si. O risco também. O risco da brutalidade e do medo. O risco de ver finalmente a cara, o mal de viver. Tudo isso encontra quem quer terminar com o ofício de existir.
Nossos contemporâneos parecem viver de ofício. Se enlouquecem abarrotados de mil obrigações, inclusive a mais triste – a de se divertir. Mascaram a incapacidade de determinar a própria vida com detalhadas e frenéticas atividades, com uma velocidade que administra comportamentos cada vez mais passivos. Não conhecem a ligeireza do negativo. Podemos não viver, eis aqui a mais bela razão para abrir-se passo com fúria à vida.
“sempre há tempo para darmos fim as coisas; o mesmo vale para se rebelar e jogar” – assim fala o materialismo da alegria.
Podemos não fazer, eis aqui a mais bela razão para atuar. Recorremos em nós mesmos a potência de todos os atos de que somos capazes, e nenhum amo poderá tirar-nos a possibilidade da recusa. Aquilo que somos e que desejamos começa com um não. Daí nascem as únicas razões para se levantar de manhã. Daí nascem as únicas razões para irmos armados à assaltar uma ordem que nos sufoca.
De um lado está o existente, com seus costumes e certezas. E de certezas, este veneno social, se morre.
Por outro lado, está a insurreição, o desconhecido que irrompe na vida de todos. O possível ínicio de uma prática exagerada da liberdade.
[sexta-feira 18 de Setembro de 2009]
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