A campanha já tinha angariado mais de 5 mil euros quando plataforma a tirou do ar. Pessoas próximas de Mamadou Ba acreditam em "sabotagem" por apoiantes da extrema-direita
25.10.2023 às 12h26
Acampanha de crowdfunding para apoiar as custas judiciais de Mamadou Ba – condenado, pelo tribunal, a pagar multa de 2.400 euros, por difamação ao neonazi Mário Machado – já tinha angariado mais de 5 mil euros quando, na noite desta terça-feira, foi subitamente suspensa e, posteriormente, cancelada pela plataforma GoFundMe.
A VISÃO sabe que pessoas próximas de Mamadou Ba acreditam que este desfecho pode ter resultado de uma “sabotagem” levada a cabo por apoiantes da extrema-direita, que terão denunciado, em massa, a campanha nesta plataforma. Dada a quantidade de queixas, a GoFundMe decidiu retirá-la do ar. Segundo as regras desta plataforma, quem contribuiu pode agora pedir a devolução do dinheiro.
Campanha de crowdfunding já tinha angariado mais de 5 mil euros na noite de terça-feira
Os 50 subscritores que tinham lançado esta angariação de fundos recordavam que “Mamadou Ba já fez saber que usará os instrumentos que o Estado de Direito lhe garante para levar a justiça até às últimas instâncias, Tribunal Europeu dos Direitos Humanos incluído, se tal for necessário”. Da lista constavam nomes ligados à política, TV e artes, como Ana Gomes, Daniel Oliveira, Isabel Moreira, Mariana Mórtagua, Marisa Matias, Rui Tavares, Capicua, Carlão, Dino d’Santiago ou Vhils, entre outros.
Mamadou Ba foi condenado, na passada sexta-feira, a pena de multa – no valor de 2.400 euros – pelo crime de difamação ao neonazi Mário Machado. A sentença da juíza Joana Ferrer considerou que o ativista antirracista chamou “assassino” a Machado, o que “denegriu” e “diminuiu o arguido na sua honra e reputação”, causando “impacto” na sua vida e na da sua família, nomeadamente filhos e mãe. A defesa já anunciou que vai decorrer.
Recorde-se que na origem do processo esteve um texto publicado, no Facebook, por Mamadou Ba, no dia 14 de junho de 2020, em que este voltou a considerar Mário Machado “uma das figuras principais do assassinato de Alcindo Monteiro” – assassinado, na Rua Garret, em Lisboa, no dia 10 de junho de 1995, por militantes da extrema-direita.
Campanha de solidariedade com Mamadou Ba
Contribua aqui https://www.gofundme.com/f/solidariedade-com-mamadou-ba
“Todos os arguidos intervenientes em cada uma das agressões a ofendidos acima descritas atuaram em comunhão de esforços, querendo atingir a integridade física e a vida dos ofendidos, por serem indivíduos de raça negra”. Esta foi a conclusão do Supremo Tribunal de Justiça quando condenou os envolvidos na noite de 10 de junho de 1995, em que Alcindo Monteiro foi assassinado e vários afrodescendentes foram espancados no Bairro Alto, em Lisboa, por um grupo organizado de neonazis. Entre eles estava Mário Machado, que depois disto se notabilizou por uma longa carreira de crimes, pelos quais também foi sendo condenado a duras penas de prisão, naquilo a que a juíza agora chamou de “processo de ressocialização”.
No dia 20 de outubro, o tribunal decidiu condenar por difamação o ativista antirracista Mamadou Ba por ter escrito que Mário Machado foi “uma das principais figuras do assassinato de Alcindo Monteiro”. Não apenas por defender com empenho a violência sobre as minorias, mas por, naquela noite fatídica, ter atuado em “comunhão de esforços” com o objetivo de “atingir a integridade física e a vida dos ofendidos, por serem indivíduos de raça negra”, espancando vários deles com um pau.
Quando Mário Machado decidiu lançar uma campanha de charme mediático para regenerar a sua imagem (falando até de erros judiciais), sem nunca abandonar o seu discurso de ódio, foram muitos os que recordaram o seu cadastro criminal e político. Como deixou claro num vídeo que publicou, o dirigente neonazi escolheu os alvos dos seus processos com critérios políticos, opção que confirmou no momento da condenação. Curiosamente, o único que chegou a julgamento, por decisão do juiz Carlos Alexandre, foi Mamadou Ba.
Quando a justiça falha, e sendo feita por humanos ela pode sempre falhar, e contribui para a normalização do ódio e do racismo, servindo para branquear o passado e o presente de alguém que mantém ambições políticas, os cidadãos exigentes têm o dever de contribuir para que ela seja corrigida. É para nós intolerável que o Estado de Direito seja usado por neonazis para silenciar a verdade e condenar a resistência ao racismo.
Mamadou Ba não foi escolhido como alvo preferencial por razões pessoais ou porque as suas acusações tenham sido as mais explícitas ou com maior visibilidade. Foi escolhido por Mário Machado por ser negro, por ser um português nascido no Senegal, por ser um dos rostos mais conhecidos da luta antirracista. Por ousar levantar a cabeça e a voz em nome de muitos. E é nesta altura que temos de dizer que ninguém larga a mão de ninguém.
Mamadou Ba já fez saber que usará os instrumentos que o Estado de Direito lhe garante para levar a justiça até às últimas instâncias, Tribunal Europeu dos Direitos Humanos incluído, se tal for necessário. Sabemos que essa é uma caminhada onerosa. E sabemos que a sua luta é mais do que sua. É de todos nós. De democratas que resistem ao crescimento dos fascismos e recusam o regresso das monstruosidades do passado.
Os abaixo-assinado apelam a que contribuam para um fundo que terá como primeiro objetivo cobrir a totalidade das custas judiciais e despesas conexas do processo de Mamadou Ba, que falou em nosso nome. A verba sobrante, se adesão for a que esperamos, será usada para casos similares ou de violência policial e racismo, com garantias de transparência no montante conseguido e nas despesas a que é destinado
Pronunciamento de Mamadou Ba, após a leitura da sentença que o condena a pagar uma multa de 2400 euros, no processo que o opõe ao cadastrado nazi Mário Machado
Dizer que Mário Machado é uma das figuras principais do assassinato de Alcindo Monteiro é simplesmente a forma mais benigna de descrever como ele se destacou na noite de “caça ao preto” pela violência com que agrediu as suas vítimas com um taco de beisebol, na cabeça, até as deixar inanimadas, como aliás refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
No festival de violência em que Alcindo Monteiro foi assassinado, Mário Machado desferiu golpes na cabeça da maioria das pessoas agredidas nessa ocasião, que só não morreram por mero acaso. É de conhecimento público que as decisões em todas as instâncias judiciais que se pronunciaram sobre a violência racista da noite de 10 de junho de 1995 não deixaram margens para dúvidas sobre o inegável envolvimento de Mário Machado na preparação e execução do macabro plano de “caça ao preto” que resultou no assassinato de Alcindo Monteiro. A propósito da responsabilidade grupal do terror da noite de 10 de junho de 1995, o acórdão do Supremo Tribunal sublinha que: “[…] (ocorreu um) fenómeno associativo: quer ao nível da idealização e preparação do crime quer ao nível da sua execução material, as vontades dos comparticipantes unem-se na prossecução no fim comum, da operação conjunta. A ação de cada comparticipante perde a sua individualidade própria e pertence não só ao seu autor, mas a todos os coautores. A ação de cada coautor é causal do crime, ainda que em concreto não se mostrem com nitidez todos os seus contornos. Ccada co-autor é responsável pela totalidade do evento, pois sem ação de cada um o evento não teria sobrevindo. Muitas vezes a simples presença de um agente no local do crime é suficiente para convencer outrem a praticá-lo.”
É por isso que desde o início desta farsa que afirmei e reitero, hoje ainda mais, este processo nunca foi entre mim e o criminoso neonazi, é sim, uma tentativa de silenciamento do anti-racismo.
De facto, o Ministério Público optou por estar ao lado de um triplo empreendimento de caráter político que consiste em branquear um criminoso neonazi, normalizar a extrema-direita e a violência racial e silenciar o anti-racismo. Já em sede de instrução, o juiz Carlos Alexandre encaminhou este empreendimento da luta política da extrema-direita por via da manipulação e captura das instituições. Com efeito, durante todo o julgamento, a procuradora Teresa Silveira Santos foi, não só corroborar a posição do juiz Carlos Alexandre, mas pior ainda, esforçou-se em se substituir ao próprio Mário Machado na sua estratégia de branqueamento, ignorando propositadamente o seu contínuo envolvimento num trajeto de violência política ao longo dos anos. Estando em causa um juízo sobre honra e reputação, não deixa de ser curioso que o Ministério Público, que é suposto de defender o interesse geral e a urbanidade pública, ignore totalmente a personalidade e os atos de alguém cuja intervenção pública tem aspetos morais e éticos que colocam em causa a dignidade humana, um dos fundamentos primordiais da democracia. Que o Ministério Público tenha essa postura já é suficientemente grave, mas que a procuradora entenda que o “Estado português deve defender a honra de um cidadão português nascido em Portugal”, mesmo sendo um confesso neonazi, contra outro cidadão português, sim, mas não nascido em Portugal é escandaloso e inaceitável.
Aliás, sendo o crime de difamação um crime particular em que se pode exigir uma reparação por danos morais, fosse este processo sobre defesa da honra e reputação, o criminoso neonazi teria pedido uma indemnização por mais pequena e simbólica que fosse, para provar que o que o move é somente lavar a honra.
Mas, consciente de não ter honra nenhuma nem reputação alguma a defender e, sobretudo, perfeitamente ciente de que a estratégia de normalização da extrema-direita e de silenciamento do anti-racismo encontra algum eco dentro das instituições da República, Mário Machado conseguiu transformar a instituição judicial num instrumento de combate político da extrema-direita contra o movimento anti-racista. Esperamos e lutaremos para que outros processos em curso nos tribunais, como o de Cláudia Simões, não tenham o mesmo desfecho.
Portanto, se nunca esteve em causa a indesmentível participação de Mário Machado na razia racista em que foi assassinado Alcindo Monteiro, com o posicionamento do Ministério Público e esta sentença que o corrobora, podemos dizer que o Estado através da instituição judicial escolheu acolher os algozes e abandonar as vítimas da violência racial. Quando o estado deixou que as suas instituições fossem capturadas pela extrema-direita, a consequência é que a Justiça branqueia um confesso criminoso neonazi.
Da nossa parte, mantemos tudo o que dissemos e continuaremos a luta por todos os meios até às últimas consequências. Devemo-lo fazer por imperativo de consciência democrática que não nos permite ceder um milímetro que seja perante o fascismo e o racismo, mas também por dever de humanidade: salvaguardar a memória das vítimas do racismo é a única forma de enfrentar a desumanidade da violência racial. A luta continua.
Mamadou Ba, 20 de Outubro, de 2023
Mamadou Ba condenado: “O Estado capitula e a justiça branqueia um nazi”
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