Pilar Quintana
“Durante o dia, Damaris andava com a cadela metida no sutiã, entre os seus seios macios e generosos, para a manter quente. A noite, deixava-a na caixa de cartão que o senhor Jaime lhe tinha oferecido, com uma botija de água quente e a camisa que tinha usado durante o dia, para que não sentisse a falta do seu cheiro.”
Pilar Quintana, A Cadela (ed. Dom Quixote, 2021)
Pilar Quintana é uma das mais aplaudidas e lidas escritoras de toda a América Latina. Escritora, guionista, redatora de publicidade entre outras atividades ligadas às letras, Quintana conta com uma série de títulos que honram o seu mérito literário, entre os quais o Prémio Biblioteca de Narrativa Colombiana e o National Book Award nos EUA em 2020 pela sua obra “La Perra”, publicada em 2017, e que rapidamente se tornará o romance literário mais vendido na Colômbia nos últimos anos. Um livro que, segundo a autora, fora escrito de fio a pavio no telemóvel, enquanto amamentava o filho bebé.
Traduzida para inglês, dinamarquês, holandês, italiano, alemão, grego, hebraico, francês, islandês e, recentemente para português, pela edições Dom Quixote em 2021, vemos agora a oportunidade de desfrutar deste intrigante e intenso livro que nos traz uma perspetiva diferente sobre a maternidade e o amor incondicional de mãe, sobre apego e perda, a solidão e remorsos de uma mulher atravessada pela violência, abandono, pobreza e invisibilidade social.
Quintana escreve “La perra”, depois de ter vivido nove anos no Pacífico colombiano, de se ter divorciado, de ter sofrido um ataque cardíaco e de se ter sentido toda a vida como uma ovelha desgarrada, ao qual rapidamente percebemos a influência desse período da sua vida nesta história.
A história é a de Damaris, uma mulher negra nos seus quarenta anos, natural da costa do Pacífico da Colômbia, numa das zonas mais isoladas e mais pobres do país, a viver com Rogélio, o seu companheiro de uma relação há muito desgastada pela miséria e violência doméstica. O sonho de Damaris era o de ser mãe, aspiração que nunca vê ser realizada e que lhe consumiria todas as sombras da sua alma. É fruto dessa aspiração, em ser mãe, que Damaris adota Chirli, uma cadela recém-nascida que ficaria orfã logo após nascer e que, Damaris, não só colocaria o nome da filha tão desejada como projeta no animal o afeto, carinho, mimos e atenção de uma gravidez nunca realizada.
Porém, aquando um dia a pequena Chirli foge de casa regressando semanas depois, prenha, a relação de Damaris com o animal mostra sofrer uma profunda alteração. Desvelando as profundezas da mente humana, da monstruosidade que reside em nós e que é despertada em momentos de maior agonia, Pilar Quintana traz-nos neste livro um retrato cruel e autofágico do amor incondicional de mãe, do desgaste psicológico de uma mulher que encontrara no seu profundo arrependimento e vazio emocional o despreendimento do mundo.
“Num primeiro momento, equacionou a ideia de ficar ali até que Ximena chegasse, deixá-la ver-lhe as mãos e o olhar de assassina, até se dar conta do cheiro a urina, aceitar assim a sua falta e o castigo que The correspondia; mas então disse para si que nem Ximena nem toda a gente da aldeia podia castigá-la como merecia. Pensou por isso em ir para o monte, descalça, vestindo apenas os calções de licra e a blusa às riscas desbotada, e caminhar para além de La Des-pensa, da estação de aquacultura, dos terrenos da Marinha, dos sítios que percorrera com Rogelio e dos que não tinham chegado a conhecer, para se perder como a cadela e aquele menino das cortinas de Nicolasito, ali onde a selva era mais terrível.”
A Cadela (ed. Dom Quixote, 2021)
Uma leitura fluida, rápida e contagiante que merece uma oportunidade de ser lida.
ISBN: 9789722071314 Editor: DOM QUIXOTE Páginas: 128